Crítica Literária,

Lendo a nós mesmos no reflexo de Machado

Teorias sobre o Bruxo dizem muito de seus autores

07nov2018

Sempre me impressionou a frequência com que Machado de Assis é chamado de “esfinge”. Imagino o gracioso bigode, sob o familiar pincenê, estampado na face da grande Esfinge a perscrutar o deserto. Penso então na legião de acadêmicos, críticos e estudantes, todos a contemplar a criatura, como fizeram tantos arqueólogos.

Em seu Machado de Assis, o escritor que nos lê, o professor da USP Hélio de Seixas Guimarães retorna à esfinge. Mas, em vez de olhar para a estátua, ele se volta para a multidão inquieta que a cerca. O livro complementa Os leitores de Machado de Assis (2012), em que o crítico propusera a famosa “crise dos quarenta anos” como resposta à sombria conclusão de que Machado escrevia para um público não muito maior que os “talvez cinco” leitores de Brás Cubas (82% dos brasileiros não sabiam ler, segundo o Censo de 1872).

Embora Machado talvez tivesse a sensação de atirar pedras num poço sem fundo, os poucos leitores de seu tempo inauguraram uma rica tradição crítica, que só cresceu ao longo do século 20, alçando o escritor ao estatuto de monumento nacional. Guimarães não apenas recenseia, mas se debruça sobre os críticos, para traçar, além das contribuições individuais, o que as leituras de Machado dizem sobre o tempo, a posição e o ângulo de aproximação de cada um em relação ao Bruxo do Cosme Velho.

Sílvio Romero atacou a obra (e a pessoa) de Machado, elencando os aspectos em que ela divergia do padrão vigente — grosso modo, faltava-lhe patriotismo na obra e sobrava-lhe melanina na pele. Com o tempo, a virulência de seus ataques acabaria por destacar o que fazia de Machado um escritor tão singular. Querendo elogiá-lo, José Veríssimo descreveu o autor como “um grego da melhor época”. A imagem de um busto de mármore, avatar da prosa castiça, levaria muitos modernistas a passar longe dele.

Tais leituras dizem muito das prioridades e dos desejos de cada época. Guimarães destaca um episódio de 1938: o secretário de Educação do Rio Grande do Sul recusou um pedido para dar o nome do escritor a uma escola alegando que a obra de Machado, um “inoculador de venenos sutis”, era mais apropriada a “homens já formados”.  Face à negativa do secretário, o governo Vargas se mobilizou em sua defesa, decretando várias homenagens.

Guimarães aponta que a leitura do burocrata pouco divergia do consenso crítico da época. Não importava. Machado agora fazia parte do panteão varguista e o travo amargo de sua prosa seria relativizado, substituído por leituras que enfatizavam a trajetória do mulato de origem humilde que se tornou presidente da Academia.

Leito de Procusto

O caso Helen Caldwell também é revelador. Como explicar o fato de que a possibilidade da inocência de Capitu só surgiria com força meio século depois da publicação de Dom Casmurro? E como entender que o livro da crítica norte-americana só seria traduzido para o português 42 anos mais tarde? Guimarães desemaranha os diálogos em torno dessa revelação; mais eloquente que a descoberta de Caldwell é o rancor com que a crítica nacional a recebeu.

Como explicar o fato de que a possibilidade de inocência de Capitu só surgiria com força meio século após a publicação de “Dom Casmurro”?

A tensão entre leituras nacionais e estrangeiras marca o último capítulo, que examina o debate entre Roberto Schwarz, Alfredo Bosi e Michael Wood, além de fazer com que esta norte-americana que vos escreve respirasse fundo antes de se pronunciar sobre mais uma obra de crítica machadiana. No entanto, me arrisco a definir Machado de Assis, o escritor que nos lê como um sólido panorama crítico, que contorna tanto o leito de Procusto das leituras premeditadas como os pontos cegos da análise crítica.

De onde vêm essas leituras todas? Ao ler os intérpretes de Machado, tomamos emprestado o pincenê do mestre para sorrateiramente observar os mundos que eles habitam. A crítica literária imita a lenda: a resposta ao enigma da esfinge, quando vier, não será uma verdade do outro mundo, mas, sim, o próprio homem. 

Quem escreveu esse texto

Flora Thomson-DeVeaux

Prepara nova tradução de Memórias póstumas de Brás Cubas para o inglês.