Literatura,

De volta para o futuro

Lima Barreto ganha a sua segunda biografia, que o situa bem diante de nós

01jul2017 | Edição #3 jul.2017

Há um quê de destino na biografia de Lima Barreto que Lilia Moritz Schwarcz vem preparando há dez anos e publica na Flip que o homenageia. Poderíamos nos perguntar: onde estava Lima Barreto todo este tempo? Parece que a nossa época finalmente o encontrou. 

Afonso Henriques de Lima Barreto foi um escritor negro, um escritor militante, uma voz dos subúrbios que fez questão de destacar que os seus últimos livros foram escritos no humilde bairro de Todos os Santos, na Zona Norte do Rio. Se trocarmos “Botafogo” e “Méier” por “Leblon” e “Barra”, é quase impossível não ouvir um eco de Anderson França nas críticas de Lima à estratificação preconceituosa da geografia socioeconômica e cultural carioca.

O meu primeiro encontro com Lima Barreto foi através de Triste fim de Policarpo Quaresma. Foi uma grata surpresa encontrar um combalido exemplar do romance, da série Bom Livro, numa feira do livro na Universidade Princeton, em Nova Jersey. Depois de um ano estudando português, eu estava sedenta por novas leituras e fui arrebatada pela capa (que logo precisou ser reforçada com durex). A ilustração trazia duas mãos, presumivelmente de uma grande estátua em ruínas: enquanto a primeira empunhava uma espada quebrada, a outra apontava para a sombra de uma figura corcunda que, por sua vez, segurava — ou se escorava em — uma bandeira pontilhada de estrelas.

Imagine ler Policarpo Quaresma com pouco ou nenhum conhecimento sobre o indigenismo, a produção agrícola brasileira ou a Revolta da Armada. A contundente crítica que Lima Barreto faz a seu tempo e sua cidade se transformaria, mais de um século mais tarde e a milhares de quilômetros de distância, numa leitura fantástica, confusa, mas ainda assim, indizivelmente triste.

No entanto, fiquei emperrada em uma passagem em particular. Por mais que sempre tivesse o dicionário à mão (foi Policarpo, e não Macunaíma, quem me apresentou à palavra saúva), no diálogo final entre o marechal Floriano e o protagonista, tropecei numa palavra que pensei que conhecia: visionário. “Você, Quaresma, é um visionário”, suspira o líder da República a seu entusiasmado visitante quando é apresentado a ele e a seu relatório, que ambiciona resolver todos os problemas da nação. E assim acaba o capítulo.

Como outras coisas no livro também me confundiam, não me preocupei muito com essa transição abrupta e confesso que não entendi a cena completamente até muito depois. Meu dicionário — que traduzia “visionário” por visionary, e vice-versa — me traiu. Visionary é sempre um elogio: um visionary é alguém dotado de grande presciência e sabedoria. Visionário, eu descobriria mais tarde, não: Floriano disse a Quaresma que ele era um sonhador, um utopista.

Ali — no espaço entre sabedoria, uma visão perspicaz do mundo e a consciência dolorosa de um sonho frustrado — está Lima Barreto, triste visionário, escrito a partir da pesquisa de Moritz Schwarcz em parceria com mais seis estudiosos.

A ressurreição de Lima Barreto este ano pode sugeri-lo como um visionary. Muito antes de Emmanuel Carrère — ou de Julián Fuks, convidado desta Flip —, Lima praticou um tipo de autoficção, como Luciana Hidalgo já apontou, entremeando narrativa pessoal e história familiar no tecido de suas crônicas e romances. E — aqui está o triste, de triste visionário — sofreu por isso. O seu primeiro romance, Recordações do escrivão Isaías Caminha, investida feroz contra o racismo e a classe jornalística da época, se inspirou nas experiências do próprio Lima como estudante negro em instituições de elite e ex-funcionário do Correio da Manhã. A obra seria atacada pela crítica justamente pela suposta falta de originalidade; a proximidade com a não ficção provocava incômodo.

Nos seus escritos sobre corrupção, inércia e racismo, o visionary — tristemente — encontra ecos demais na nossa sociedade, mesmo quase um século após a sua morte. Os primeiros capítulos da biografia que sai agora do prelo são dedicados às esperanças frustradas dos homens e mulheres negros da geração dos pais do escritor. Depois de sua mãe sucumbir à tuberculose e de seu pai — tipógrafo promissor, depois funcionário público reconhecido — se tornar refém de distúrbios mentais, Lima se viu isolado no patamar a que tinha sido alçado pela ascensão social de sua família. O sonho de uma sociedade pós-racista que ainda tentamos alcançar encontra paralelo no sonho da sociedade pós-escravista, cristalizada no hino da Proclamação da República: “Nós nem cremos que escravos outrora/ Tenha havido em tão nobre País…”, composto, como lembra Schwarcz, apenas um ano e meio depois da abolição da escravatura.

Uma anedota frequentemente reiterada por um colega de escola de Lima trata de quando um grupo de alunos da Politécnica decidiu pular o muro do Teatro Lírico para assistir a um ensaio de Aida. Mesmo tentado, Lima acabou desistindo. Sua explicação: “Ah! Vocês, brancos, eram ‘rapazes da Politécnica’… Mas eu? Pobre de mim. Um pretinho. Era seguro logo pela polícia. Seria o único a ser preso”. 

Mesmo tentado a pular o muro do teatro para assistir a um ensaio, Lima desistiu: ‘Pobre de mim. Um pretinho. Seria o único a ser preso’

A história foi recentemente relembrada por Fred Coelho em sua coluna em O Globo, quando uma bala perdida invadiu os muros de uma escola e matou a estudante Maria Eduarda em Acari. Podemos ainda pensar em Rafael Braga — o único a ser mantido atrás das grades por causa dos protestos de junho de 2013. Há ainda o relato de Lima, de quando foi levado ao hospício num camburão da polícia: a descrição do percurso, sufocante e violento, evoca a história de Freddie Gray, jovem negro de Baltimore que teve a coluna quebrada em uma viatura policial, a caminho da delegacia, e morreu em decorrência dessas lesões em 2015.

Lima seria evocado novamente no Carnaval carioca deste ano, por causa da controvérsia sobre a decisão do Cordão do Boitatá de parar de cantar certas marchinhas. Contra os argumentos do respeito à tradição e da inofensividade das letras, supostamente cantadas sem malícia, eis que nosso visionary escreveu, em outubro de 1907, numa revista de vida curta, que canções como “Vem cá, mulata” deveriam ser banidas da festa. 

E o que dizer da polêmica sobre o uso de turbantes como fantasia ou acessório de moda por não descendentes de africanos? A resposta centenária de Lima é o conto “Cló”, em que uma mulher branca se fantasia de “preta mina” e, numa cena grotesca, flerta com um homem cantarolando a “Canção da preta-mina”, com o terrível refrão “Mi compra ioiô”.

“Que me importa o presente!”, ele escreveu no ensaio “O destino da literatura”, publicado um ano antes de sua morte. “No futuro é que está a existência dos verdadeiros homens.” A partir da força dessas anedotas isoladas, o leitor incauto pode ficar tentado a fazer de Lima um cidadão honorário do século 21. Mas Schwarcz, a despeito de ter passado uma década ao lado do escritor, tenta resistir ao impulso do biógrafo-camarada que glorifica seu objeto. 

Se, sob muitos aspectos, Lima parece estar um século à frente de seu tempo, ele também é frustrantemente controverso — defende as mulheres da violência doméstica e apoia o divórcio, mas zomba do feminismo das classes mais abastadas; atua como escudeiro da cultura popular, mas se opõe firmemente ao futebol; mostra-se solidário com muitas lutas, mas, como tantos outros, caçoa da sexualidade de João do Rio.

Aqui e ali, Schwarcz não consegue disfarçar o tom de lamento. Quem dera Lima não tivesse atacado a primeira edição de Klaxon, apresentada a ele por um esperançoso Sérgio Buarque de Holanda, e quem dera os “rapazes” da revista não tivessem embarcado numa revanche barata, rotulando-o de reacionário… E quem dera, claro, ele tivesse vencido o álcool e sobrevivido aos seus 41 anos, podendo ter feito parte ativa da mudança profunda na literatura que se seguiu à sua morte, em 1922, que seguiria os seus passos no compromisso com a realidade brasileira contada sem rodeios.

Grande parte do que ajudou a tirar o autor da obscuridade pós-morte foi a sua primeira biografia, A vida de Lima Barreto, lançada em 1952 e relançada neste mês pela Autêntica em 11ª edição. Seu autor, Francisco de Assis Barbosa, em 1970 se tornou membro da Academia Brasileira de Letras — o grupo seleto a que o seu biografado tentou se juntar por três vezes, sem sucesso.

No prefácio de seu livro, Assis Barbosa se coloca claramente como um jornalista, e não um crítico literário, e rotula o livro como uma “singela narrativa biográfica”, prefácio de um estudo mais acadêmico. Apesar da prosa fluida, a biografia pioneira não envelheceu bem em alguns aspectos. A orelha da terceira edição, escrita por Antônio Houaiss, refere-se casualmente a Lima como “o genial mulato beberrão”. Outras expressões desconcertantemente similares podem ser encontradas ao longo da biografia — a mãe e os tios de Lima, frutos prováveis de uma relação extraconjugal entre patrão e empregada negra, chegam a ser chamados de “bastardinhos”. Schwarcz, em contraste — com obras-chave como O espetáculo das raças e Nem preto nem branco, muito pelo contrário em seu currículo —, dedica quase um capítulo inteiro a uma análise delicada do arco-íris de termos que Lima usou para distinguir e destacar a cor da pele de seus personagens variados, detendo-se sobre cada palavra.

É revelador cotejar a narração dos mesmos episódios relatados nas duas biografias. Assis Barbosa, munido de detalhes tirados de entrevistas com irmãos de Lima Barreto, permite-se por vezes a recriação de conversas inteiras. Historiadora acima de tudo, Schwarcz tem mais cuidado com as fontes e com o que vai entre aspas. Ambas as abordagens são compreensíveis, e sua complementaridade pode interessar ao leitor disposto a mergulhar na vida de Lima Barreto. 

O relato do jornalista é uma narrativa dramática da ascensão e queda do biografado e chega a lembrar a maneira como Lima romanceava a memória; a antropóloga é uma leitora minuciosa de ambos, atenta tanto à arte literária quanto à necessidade de ceticismo e rigor histórico.

Enquanto Assis Barbosa passa ao largo de certos temas — sobre Amália, a mãe de Lima, ele escreve que “é muito simples a sua história” —, a nova biografia mergulha nos meandros de teorias de determinismo racial, com a porta da cidadania entreaberta a gerações de afrodescendentes pós-abolição e a patologização da loucura e da mendicância, além de outras questões nem tão simples assim.

Considerando essas diferenças, fiquei surpresa com o afeto e a gratidão com que Moritz Schwarcz se refere à biografia de Assis Barbosa. “Esta não é […] a história de Lima Barreto. Nem poderia ser, até porque Lima mereceu uma biografia fundamental, publicada […] em 1952 por Francisco de Assis Barbosa. O jornalista e acadêmico não só escreveu com extremo rigor e ‘afeto’ sobre a vida do autor, como foi responsável pela reedição de sua obra, naquela altura basicamente desaparecida do mercado.”

Aos olhos de uma estudante de Machado de Assis acostumada a biógrafos se digladiando sobre o mestre, a solidariedade dos limistas é um ato inesperado de camaradagem

Aos olhos de uma estudante de Machado de Assis acostumada a biógrafos e ensaístas se digladiando sobre diferentes aspectos do trabalho do mestre, essa solidariedade entre limistas é um ato inesperado de camaradagem. Pensando bem, faz sentido — talvez seja natural que pesquisadores de um escritor esquecido nas sombras do próprio Machado e outros membros da Academia, por um lado, e dos modernistas, por outro, se unam em torno do objeto de admiração comum. Um quarto de século depois da morte do escritor, Assis Barbosa conseguiu entrevistar sua família e vários de seus amigos, ajudou a organizar a publicação de sua obra completa, inclusive textos até então inéditos, e cumpriu papel crucial na consolidação do autor que será homenageado neste mês em Paraty. Nos prefácios à quinta e sexta edição, incluídos no texto novo, o biógrafo cataloga orgulhosamente as traduções, conferências, e estudos acadêmicos dedicados a Lima que surgiram na esteira de sua obra.

Para quem quiser conhecer melhor Lima Barreto antes do fim de julho, tanto A vida de Lima Barreto quanto Lima Barreto: triste visionário são excelentes livros de cabeceira. O primeiro oferece uma narrativa da vida do escritor que por vezes beira o cinematográfico, em que confundem-se Isaías Caminha, Vicente Mascarenhas, o major Quaresma e Afonso Henriques de Lima Barreto. 

E isso de modo algum é um ponto negativo; A vida de Lima Barreto espelha a vida de Lima Barreto, o eterno autor-protagonista. Já a biografia de Schwarcz, embora igualmente encantada pela prosa de Lima, é mais minuciosa e vai guiando o leitor com mais vagar pelas paisagens sociais e físicas frequentadas pelo escritor. 

Num texto trazido à luz pela biografia de Assis Barbosa, José Veríssimo criticou Isaías Caminha pelo uso pouco sutil de pseudônimos para disfarçar personalidades cariocas, dizendo que a obra “pode[ria] agradar a malícia dos contemporâneos”, mas perigava escapar à posteridade. Olhando de 2017, o Rio que Lima alvejava se torna cada vez mais distante nas suas particularidades, mas o que fica para os leitores é algo parecido com o impacto sentido por uma aluna de primeiro ano de português. Mesmo sem conhecer o mundo em que os textos foram escritos, reconhecemos a lucidez magoada do olhar que os produziu.

Enquanto apenas as edições mais recentes da biografia de Francisco de Assis Barbosa passaram a usar imagens de Lima em suas capas, tanto a nova edição de A vida de Lima Barreto como a primeira edição de Lima Barreto, triste visionário trazem o biografado encarando o leitor. A edição da Autêntica traz a reprodução de um retrato do arquivo do Hospital Nacional de Alienados. A fotografia original é de um homem vestido com uma camisola de hospital, com a palavra PANDEMONIO (a ala em que ele estava internado) bordada no peito. Isso foi em 1914, quando Lima foi hospitalizado pela primeira vez, por alucinações relacionadas ao álcool. 

Talvez em deferência à sua carreira de servidor público, o relatório o categoriza como “branco”. Em 1919, durante a segunda passagem de Lima Barreto pelo hospício, seu olhar fotografado é infinitamente mais fatigado, ao mesmo tempo derrotado e desafiador. Desta vez ele foi listado como “pardo”.

Ao longo de seu livro, Schwarcz confronta essas e outras imagens de seu biografado, além da fotografia mais familiar à maior parte dos leitores, em que um Lima empertigado, de rosto redondo, bem vestido, sugere se tratar de um homem de tez clara. Das poucas fotografias que temos dele, a maior parte é de uma formalidade não representativa — fora do normal para o boêmio deliberadamente maltrapilho que Lima se tornou — ou foi tirada nas dependências de um hospital, mostrando o escritor despido de seu status social, reduzido a um diagnóstico.

A arte da capa, criada em diálogo entre Schwarcz e o artista Dalton Paula, chegou a um equilíbrio na tentativa de alcançar uma imagem mais verdadeira, mais representativa do visionário. Seu Lima não é nem engomadinho, nem veste um pijama hospitalar, mas se apresenta em mangas de camisa, com a gravata frouxa. Se nos retratos do hospício ele olha diretamente para a câmera, aqui o pintor nos apresenta um homem aparentemente perdido em seus pensamentos. 

A imagem de Lima em mangas de camisa, com a gravata frouxa, é uma síntese da pesquisa: um olho parece olhar ao longe, enquanto o outro se volta para o íntimo

Essa imagem é uma síntese da pesquisa apresentada em Triste visionário: nos aproximamos do biografado tentando reconstruí-lo melhor, mesmo se o estranhamento da imagem pintada nos faz pensar duas vezes sobre a distância que nos separa. Um olho parece olhar ao longe, enquanto o outro se volta para o íntimo, em algum lugar entre o nosso tempo e o dele. Tem-se a impressão de que, se alguém pousasse a mão sobre seu ombro, a figura ganharia vida e encontraria o olhar do leitor. Não sem uma certa desconfiança. 

Quem escreveu esse texto

Flora Thomson-DeVeaux

Prepara nova tradução de Memórias póstumas de Brás Cubas para o inglês.

Matéria publicada na edição impressa #3 jul.2017 em junho de 2018.