Crítica Literária,

Inteligências de esquerda

Em seu escritos, Benjamin dizia que Brecht era um fenômeno difícil, pois se negava a explorar seu talento literário quando não era preciso

01dez2017 | Edição #8 dez.17-fev.18

Walter Benjamin e Brecht foram amigos. Dois alemães, ambos talentosos, ambos comunistas, nos tempos em que o comunismo ainda não era sinônimo de stalinismo. Uma amizade marcada por afinidades e por diferenças que se complementavam. Benjamin teria sido um melancólico no sentido clássico, e Bertolt Brecht, um tipo que os gregos chamariam de “sanguíneo”. Ambos, cada um a seu modo, foram combatentes dos bons combates no período entre as duas Guerras.

Mas nem sempre estiveram de acordo. Brecht não aprovava a tese benjaminiana sobre a perda da aura, proposta em A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica: “Mística, nada além de mística, apesar de sua oposição à mística”, escreveu Brecht em seu diário. Por outro lado, amigos de Benjamin, como Gershom Scholem, não aprovavam sua amizade com o comunista BB. Theodor Adorno comentou, em, 1932 que “sob a influência de Brecht, Benjamin só fez asneiras”.

Em 1933, Brecht emigrou para Praga, e Benjamin, para Paris. De Praga, Brecht foi para Svendborg, na Dinamarca — onde hospedou o amigo por alguns meses, em 1934. O exílio definitivo de Brecht foi nos Estados Unidos, onde também se refugiaram Adorno e Horkheimer. Benjamin permaneceu em Paris, de onde, até 1937, ainda obteve alguma renda com ensaios para a Revista de Estudos Sociais, editada pelos colegas frankfurtianos.

Foi no isolamento parisiense, sob uma série de privações, que Benjamin produziu as milhares de anotações que formariam um livro nunca concluído: as Passagens. De acordo com a biografia de Bernd Witte, o empobrecimento fez com que perdesse contato com muitos amigos, inclusive os do círculo de Brecht.

Em 1939, Benjamin foi conduzido, como “fugitivo alemão”, a um campo de concentração em Nevers, na França. Embora tenha estado muitas vezes doente nesse período, fez o possível para criar uma vida cultural no campo: deu aulas de filosofia, participou do projeto de um jornal. Sua disciplina de estudos e leitura, que compartilhava com outros presos alemães, fez com que o prisioneiro Hans Sahl comentasse em seu diário: “Do caos e do desamparo emergiu uma sociedade”. Foi libertado em novembro, com ajuda de amigos influentes.

Em agosto de 1940, antes de Hitler entrar em Paris, Benjamin fugiu para o sul da França com a irmã, Dora (vale lembrar o fabuloso relato “Haxixe em Marselha”, escrito naquela ocasião). No mesmo mês, Horkheimer finalmente obteve para Benjamin um visto de entrada nos EUA, e ele empreendeu a travessia dos Pirineus rumo à Espanha, onde tomaria o navio. Na fronteira, o grupo foi detido. Durante a noite, diante da ameaça de ter que retornar à França ocupada, Benjamin tomou uma dose fatal de morfina. No dia seguinte, a fronteira foi reaberta. Benjamin se considerava um azarado — uma criança perseguida pelo “Corcundinha”, personagem das lendas contadas pela avó, que costumava dizer sobre o neto: “Sem jeito mandou lembranças”.

Embora Benjamin possa ter sido um melancólico, seu suicídio não deve ser interpretado como sintoma de grave depressão. Teria sido, a meu ver, um gesto trágico, no sentido do que Nietzsche chamou de “fatalismo russo” — como os soldados que, na iminência da derrota, se deixam morrer congelados na neve.

Benjamin sobre Brecht

Como acontece com os outros textos de Benjamin, os que compõem a coletânea Ensaios sobre Brecht não se entregam ao leitor com facilidade. Talvez por isso a ordem dos ensaios não siga rigorosamente um critério cronológico. São textos escritos entre 1930 e 1939, além de três manuscritos sem referência de primeira edição: a primeira e a segunda versões de “O que é teatro épico? Um estudo sobre Brecht”, os “Estudos para a teoria do teatro épico” e um “Trecho de ‘Comentário sobre Brecht’”, em que a afirmação de abertura me parece embebida da ironia característica das obras do próprio BB: “Bertolt Brecht é um fenômeno difícil. Ele se recusa a explorar ‘livremente’ seus grandes talentos literários. E talvez não haja nenhuma crítica contra sua atuação literária — plagiador, perturbador da ordem, sabotador — que ele não reivindicaria como elogio”.

A proposta do teatro como instrumento de ação política está bem resumida por Benjamin quando ele afirma que, dos autores alemães, Brecht seria o único que se pergunta onde empregar seu talento e o único que só o emprega se estiver convencido da necessidade de fazê-lo, abstendo-se sempre que a ocasião não o exija.

Devo admitir o quanto acho difícil resumir os ensaios de Benjamin, nos quais o estilo é tão indissociável do conteúdo que, com frequência, não fazemos mais do que parafraseá-lo. Reproduzo, ainda do mesmo texto, o elogio de WB a BB. Observe a precisão, digamos, brechtiana, da seguinte afirmação: “A literatura não espera mais nada do sentimento de um autor que, desejoso de mudar o mundo, não tenha se aliado à sobriedade. Ele sabe que a única chance que lhe restou é tornar-se produto secundário num processo muito ramificado para a mudança do mundo”.

A seguir, temos o trecho do “Comentário sobre Brecht”, de 1930, e o excelente estudo sobre A mãe, escrito em 1932. Nessa resenha, Benjamin parte da afirmação de Brecht de que o comunismo não é radical: radical é o capitalismo, que “acirra o sofrimento de condições humanas indignas”. Para Benjamin, a pergunta embutida em A mãe seria: será que a função social da mãe pode se tornar revolucionária? Não consigo deixar de imaginar como essa pergunta seria impertinente aos olhos de Freud — autor bastante estudado por Benjamin —, que cinco anos antes afirmara, no célebre ensaio “A feminilidade”, que a única função social das mulheres seria, além de criar filhos, “tecer os panos com os quais cobrem sua castração”.

“O país em que o proletariado não pode ser mencionado” foi escrito em 1938, já com a Alemanha sob domínio nazista, por ocasião da estreia de oito peças curtas de Brecht. Na resenha de Os fuzis da sra. Carrar, ele elogia a atuação da atriz Helene Weigel, mulher de Brecht, que, depois de sua “atuação inesquecível em A mãe (…) mantém vivo o espírito do trabalho clandestino nos tempos de perseguição”.

O leitor habitual de Benjamin haverá de observar o quanto, nessa coletânea, seu estilo parece atravessado pela ironia brechtiana. No texto sobre o Romance dos três vinténs, ao comentar que a peça é ambientada numa Londres que se parece com a dos tempos de Dickens, Benjamin observa: “As circunstâncias da vida privada são as antigas, as da luta de classes, atuais (…) Na Londres atual, dizem, fica evidente que é bom para o capitalismo manter certo atraso”.

“O autor como produtor” é uma palestra proferida no Instituto para o Estudo do Fascismo, já no exílio em Paris. É notável a influência de Brecht na observação final de Benjamin: “O espírito que se torna perceptível em nome do fascismo tem de desaparecer. O espírito que enfrentará o fascismo confiando em sua própria força milagrosa vai desaparecer. Pois a batalha revolucionária não se dá entre o capitalismo e o espírito, mas entre o capitalismo e o proletariado”.

O livro se encerra com as anotações de Benjamin sobre as conversas com Brecht em Svendborg. A impressão que se tem desse relato é a de que os dois amigos são tipos que se complementam: onde o melancólico e míope Benjamin vê fundo, o sanguíneo e combativo Brecht vê longe. As diferenças entre os destinos dos dois deve ter um pouco a ver com isso.

Quem escreveu esse texto

Maria Rita Kehl

Psicanalista, é autora de O tempo e o cão e Bovarismo brasileiro, ambos pela Boitempo.

Matéria publicada na edição impressa #8 dez.17-fev.18 em junho de 2018.