História,

Duas sinhás

Livros de memórias de duas fazendeiras paulistanas mostram a convivência cotidiana com a escravidão em fins do século 19

01out2020 | Edição #38 out.2020

A Chão Editora foi criada em 2018 por Beatriz Bracher e Marta García, com o projeto de apresentar relatos de pessoas anônimas que revelam muito da história da vida privada no Brasil. Entre eles se encontram depoimentos e biografias de personagens femininas do século 19. O primeiro desses foi a  biografia de Jovita Alves Feitosa, cearense, mulata e sonhadora: saiu de Teresina para lutar como voluntária na Guerra do Paraguai. Em seguida, foram lançados os livros de memórias de duas fazendeiras paulistanas: Dias ensolarados no Paraizo, de Brazilia Oliveira de Lacerda, e Páginas de recordações, de Floriza Barboza Ferraz.

Nenhum dos livros foi escrito em forma de diário. São reconstituições da infância e da adolescência das autoras, escritas já em idade mais avançada. Sabemos que aquele que recorda preenche as lacunas das lembranças com fragmentos de memórias inventadas. Mesmo assim, a precisão de detalhes dessas duas memorialistas indica que o tempo que transcorre lentamente, característico da vida em fazendas ou cidades pequenas, permite uma fixação muito mais detalhada e consolidada do vivido. 

Esse também é o tempo que transcorria no final do século 19, pelos interiores de São Paulo — um estado que só se urbanizou com a industrialização no século 20. O livro editado a partir das memórias de Brazilia tem um título idílico — Dias ensolarados no Paraizo —, enquanto o de Floriza é mais sóbrio — Páginas de recordações. A desenvoltura da escrita de ambas é notável, mas vale observar que o estilo de Brazilia é melhor. Floriza tem, por exemplo, o hábito de espalhar vírgulas por onde não deveriam estar, ou de trocar o lugar onde caberia a vírgula na frase.

A família de Brazilia carrega o dna da estirpe dos chamados “barões do café”. O título de nobreza, no Brasil oitocentista, não passa do arremedo por parte da oligarquia cafeeira. Brazilia nasceu um ano antes da abolição da escravidão, que aconteceu em 1888. Ela e seus irmãos aprenderam a ler com a mãe. Depois, tiveram uma professora particular alemã, talvez com o intuito de que as meninas, que não precisariam de nenhuma formação profissional, se tornassem esposas mais interessantes na vida adulta. Brazilia foi feliz na fazenda; era moleca — e livre. Paraizo (escrito com a grafia da época) é o nome da fazenda onde a autora nasceu e passou a infância. À custa do trabalho escravo, sua família enriqueceu com o cultivo de café. O leitor é informado de que, depois da Abolição, muitos cativos continuaram trabalhando lá. 

Assim como Brazilia, Floriza não correspondia ao perfil recatado e tímido das moças de seu tempo

O fim da escravidão aqui não se fez acompanhar de nenhuma política de reparação para os cativos recém-libertos. Se em alguns estados do Sul dos Estados Unidos as famílias de ex-escravos recebiam do governo um pedaço de terra e um animal de tração para começar a vida, no Brasil milhares de descendentes de africanos foram despejados nas ruas sem nenhuma perspectiva de sustento. O fazendeiro que explorava a mão de obra gratuita de quinhentos africanos, com a Abolição, mandava embora quatrocentos e passava a explorar ainda mais o trabalho dos cem, ou cinquenta, aos quais pagava salários de fome.  

Em suas lembranças de menina-sinhá, Brazilia emprega com muita frequência a palavra “doçura” ao se referir ao ambiente familiar. A vida familiar que ela evoca justifica a palavra, que não se aplicava ao trato com os negros. Os contratempos ficavam por conta dos inúmeros episódios de doenças graves como o sarampo e a catapora, ou de infecções causadas por feridas antes da chegada da penicilina, que acometiam as crianças da família e se alastravam entre os escravizados, matando muitos deles. Na outra ponta,

Brazilia relata a alegria inesperada dos negros, nas festas da fazenda de que eram autorizados a participar. Ali se revela a grande influência da cultura africana. As festas no Paraizo, além da fartura de comida, ofereciam um retrato do sincretismo tropical: baile, samba, congada. Mas essa condescendência da família de Brazilia para com os escravizados não implicava nenhum reconhecimento de igualdade entre eles e os brancos. 

Já Floriza Barbosa Ferraz, autora de Páginas de recordações, não conheceu vida mansa. Nasceu em 1847 — bem antes da Abolição, portanto. A Fazenda da Pitanga, perto de São Carlos, também cresceu à custa do trabalho escravo. A moça observa que os negros dormiam em uma área trancada a cadeado, cercada de muros altos, guardados por cães fila. “Como os das cadeias públicas”, com “um quarto pequeno, escuro, com armadilhas no assoalho onde ficavam presos pelos pés à espera de outros castigos como o bacalhau, a palmatória etc. Nunca vimos o tal quarto dos castigos, mas ouvíamos contar como ele era, e mesmo assim nos impressionávamos e tínhamos dó dos negros”. 

Racismo

As camas dos negros eram feitas de ripas de coqueiro ou colchões de palha rasgada. Mas a sensibilidade da criança em relação às péssimas condições em que viviam os africanos escravizados está permeada de comentários racistas. Ao relatar o fato de que alguns africanos se arriscavam a roubar o café nos terreiros, qualifica-os como “viciados”. O castigo era o famoso “tronco”. Quando o filho de um dos irmãos mais velhos de Floriza ficava entediado, “um moleque encarregado de fazê-lo dormir durante o dia passava pela sala com ele montado em suas costas, a caminho da cama”. 

Os Ferraz, no início da vida na fazenda, não eram tão ricos a ponto de comprar uma tal quantidade de escravos suficiente para dispensá-los do trabalho pesado. O pai e os irmãos de Floriza também participavam do trabalho duro de plantar e colher café, tentar proteger a plantação dos estragos da geada e das pragas que assolavam o interior paulista. Mas, apesar das pragas, das perdas de colheitas, das doenças que dizimavam famílias inteiras de serviçais e colocavam a família dos proprietários em risco, a vida parecia amena aos olhos da autora. 

A liberdade que a vida na fazenda lhe concedia enriqueceu, com a narrativa de suas ousadias de moleca, o relato do que poderia ser o perfil de uma recatada “sinhazinha”: a menina-moleca subia em árvores, pescava no regato, montava e saía a correr pelas estradas. Floriza recupera a ingenuidade da infância ao contar dos baldinhos que improvisava com cabaças de cidra, do balanço amarrado na amoreira, das festas juninas e outras celebrações que ocorriam na fazenda. Conta com carinho sobre a ama de leite que conseguia alimentar seu irmãozinho e, só depois, o próprio filho, sem atentar para a relação desigual criada pela escravidão. 

Assim como Brazilia, Floriza não correspondia ao perfil recatado e tímido das moças de seu tempo. A vida na fazenda lhe proporcionava liberdade e coragem, estranhas às meninas da cidade. Ao encontrar uma cascavel na plantação de abacaxis, a menina prendeu a cobra venenosa dentro de um caixotinho, para em seguida enviá-la para o Butantan, em São Paulo.

A produção dos cafezais permitiu que os filhos de Antônio e Ambrozina Ferraz estudassem em boas escolas em Campinas — cidade que, até o começo da industrialização, era muito mais importante e mais rica do que a vila de São Paulo, por causa de suas fazendas de café. Mais tarde, a Fazenda da Pitanga substituiu a mão de obra africana pelo trabalho remunerado dos imigrantes que fugiam da fome na Itália em fins do século 19. 

Ao final do livro, Floriza dedica vinte páginas a enumerar pessoas próximas da família, na Fazenda do Engenho. Tios e primos, comendadores, visitas importantes. A seguir recorda, “com saudade e gratidão”, os colonos mais antigos. Conta, em algumas linhas, a história de cada um. Entre eles, apenas um “casal de pretos […] muito bons e cumpridores de seus deveres”. Ao se casarem, Floriza e o marido recomeçaram de baixo para transformar a pequena propriedade da família em uma fazenda próspera.

Os relatos de Floriza e Brazília terminam da mesma forma: os últimos grandes eventos contados por elas são seus casamentos, com moços de boas famílias aceitos por seus pais desde o começo por causa de suas origens, muito bem colocados na vida. Tanto uma quanto outra declaram ter sido muito felizes na companhia de seus digníssimos maridos.

Quem escreveu esse texto

Maria Rita Kehl

Psicanalista, é autora de O tempo e o cão e Bovarismo brasileiro, ambos pela Boitempo.

Matéria publicada na edição impressa #38 out.2020 em setembro de 2020.