Crítica Literária,

A voz do morto

Coletânea reúne textos de escritores sobre Machado de Assis publicados entre o seu funeral e o seu centenário de nascimento

01maio2019

Se dependesse de Osório Duque-Estrada, em todo 29 de setembro deveríamos usar preto. Assim como Dumas Filho, que deu essa ideia para venerar o aniversário de morte de Victor Hugo, o autor da letra do Hino Nacional propôs no Correio da Manhã que o Brasil guardasse luto no dia em que perdemos Machado de Assis.

Em 1885, o caixão de Hugo foi velado sob um Arco do Triunfo forrado de negro. Milhares foram prestar homenagem. Vendedores de bugigangas e souvenires se acotovelavam; espectadores alugaram balcões no trajeto do cortejo, outros subiam em árvores. Hiperbólicas estimativas contabilizaram 2 milhões de pessoas nas ruas, quase a população de Paris naquele momento (e até hoje), se não mais.

No final de setembro de 1908, como lemos em Escritor por escritor: Machado de Assis segundo seus pares, uma multidão bem menor se reuniu na sala de estar de um chalé no Cosme Velho. Euclides da Cunha e vários escritores — Coelho Neto, Graça Aranha e José Veríssimo entre eles — sussurravam (mal posso imaginar outro tom de voz) enquanto um câncer roía, com suprema indiferença, a vida de seu amigo, prostrado no quarto. Era geral a consternação diante da indiferença da nação, da constatação de que um autor de tal estatura terminasse os seus dias sem nenhum sinal de comoção pública.

Reza a lenda que ouviram bater à porta um rapaz, desconhecido de todos, que lera a respeito do desengano do mestre. Foi levado até o quarto do moribundo, beijou-lhe a mão e partiu. (Lúcia Miguel Pereira identificaria, no tal jovem, o crítico Astrojildo Pereira.) “Ele saiu — e houve na sala há pouco invadida de desalentos uma transfiguração”, registrou Euclides. “No fastígio de certos estados morais concretizam-se às vezes as maiores idealizações. Pelos nossos olhos passara a impressão visual da Posteridade…”

Afinal de contas, estima-se que um quinto da cidade tenha levado Machado ao cemitério São João Batista: uma boa média entre os onze que assistiram ao enterro de Brás Cubas e os milhões que homenagearam Hugo. Como já terá notado o leitor, o Brasil jamais desenvolveu a devoção sonhada por Duque-Estrada. Prova disso está na esquina das ruas Cosme Velho e Marechal Pires Ferreira: a despeito dos louvores em vida e após a morte, não há nem sombra do chalé de Machado.

Logo após Machado de Assis: o escritor que nos lê, Hélio de Seixas Guimarães juntou esforços com Ieda Lebensztayn para compilar reflexões críticas e biográficas dos colegas de profissão de Machado. Este primeiro volume cobre o período imediatamente posterior à morte do autor (1908) e vai até 1939, quando se comemorou o centenário de seu nascimento. O sumário é um verdadeiro “quem é quem” dos luminares do período — Rui Barbosa, Artur Azevedo, Bilac — e funciona como um “quem é esse aí?” de figuras menores, mais ou menos próximas de Machado. 

O luto pela morte de Carolina torna difícil aceitar a tese de que, pela timidez congênita, Machado fosse incapaz de sentir qualquer paixão

Na ponta mais próxima do arco temporal, encontramos autores como Lima Barreto e Ronald de Carvalho esforçando-se para se reconciliar com a herança do grande escritor. À medida que cada escritora ou escritor abraça Machado ou o renega, sentimos de onde vem a atração ou a repulsa: Humberto de Campos carinhosamente imagina o autor como um garotinho de pés descalços, enquanto Mário de Andrade se sente repelido pela figura seca do homem.

É difícil não invejar quem o conheceu, mas também pode ser desafiador enfrentar a prosa deles. Algumas das primeiras homenagens lembram o pomposo discurso ao pé da cova de Brás Cubas: Vós, que o conhecestes, meus senhores, vós podeis dizer comigo que a natureza parece estar chorando a perda irreparável de um dos mais belos caracteres que têm honrado a humanidade… O lado bom é que a leitura permitiu a esta gringa melhorar o vocabulário, absorvendo expressões como “desacorçoamento” e “câmara-ardente”. Aguardo uma ocasião especial para usar esta, de Araripe Júnior: “hetaira de amores epidérmicos”.

Monumentalização

Na primeira metade do livro, há uma transição notável do luto imediato para a monumentalização do morto. O processo começa já em torno do funeral e se faz concreto com o apelo público para levantar os recursos destinados a erguer uma estátua, em 1929. O monumento pode ainda hoje ser visitado na Academia Brasileira de Letras, onde um Machado de olhar severo fita o público, sentado em seu trono de pedra.

A partir de 29 de setembro de 1908, parece consenso que, desde a morte de Carolina, em 1904, Machado, o homem, era um vivo-morto caminhando pelas ruas do Rio. Mário de Alencar relata que nem um único móvel foi mexido após a morte da mulher, e que a criada continuou a pôr a mesa para ela. O exemplar de Esaú e Jacó que ela estava lendo quando adoeceu foi guardado como uma relíquia, o marcador no exato ponto em que foi deixado.

A casa ficou intacta, mas Machado soçobrou no luto. “Não o choro, não quero chorá-lo,” escreveu Artur Azevedo, “porque a morte foi um alívio para aquele corpo torturado e aquela alma dolorida”. O acúmulo de passagens assim torna difícil aceitar a tese de que, pela timidez congênita, fosse incapaz de sentir qualquer paixão.

Os depoimentos convergem em outros pontos, dando uma ideia de quão impenetrável Machado — “o menos ruidoso dos homens”, como o chamou Oliveira Lima — devia parecer. “A multidão parecia começar-lhe a partir de três ou quatro pessoas”, escreveu Euclides uma semana após a morte do amigo. Um eloquente Aluísio Azevedo descreve o “oculto orgulho traduzido por uma espessa reserva que ele disfarçava ainda com maneiras muito corteses e friamente risonhas”. Alcides Maia recorda um “ríctus sardônico” que, num desafio pessoal, tentou um dia varrer da face de Machado.

Para além dos detalhes biográficos e do elogio póstumo, é possível encontrar uma saudável amostra do debate em torno da obra do escritor durante sua vida, que se desenvolveria nas décadas seguintes. Aí se incluem reiteradas críticas aos níveis relativamente baixos de conteúdo brasileiro na escrita de Machado; menos frequentes, embora entusiásticas, são as impugnações do argumento nacionalista. 

Mais de um crítico cai na armadilha de avaliar Machado pelo que não fez, mais do que pelo que fez, e uns poucos aparecem para denunciar o mau procedimento crítico. Em 1924, Amadeu Amaral dedicou um ensaio aos “juízos ligeiros” sobre homem e obra. “Disse uma senhora, referida por Alfredo Pujol numa das suas excelentes conferências, que aos romances de Machado lhes faltava o ar. Parece uma reflexão aguda, e é apenas uma frase.” A carapuça volta e meia ajuda a definir certas observações lidas na coletânea.

Alguns dos momentos mais saborosos são detalhes que ajudam a reforçar os contornos do homem. Salvador de Mendonça, seu colega no Diário do Rio de Janeiro, recorda cenas que, anacronismo à parte, não fariam má figura num episódio da série The Office. Então conhecido como Machadinho, ele desfila para lá e para cá de preto e de cartola preta — e eis que sua nêmesis na redação, Henrique César Muzzio, rouba-lhe o cachenê colorido e o troca por outro, escuro, para completar o look funéreo do escritor.

Machadinho então surrupia a cartola do rival e troca por outra, cinzenta e felpuda, para caçoar das suíças encanecidas de Muzzio. (Humor de época, eu sei, mas não custa imaginar a cena como o equivalente oitocentista — para quem é versado na série televisiva — de pôr o grampeador na gelatina.) Filinto de Almeida, entrementes, lembra que Machado contava piadas “com imensa verve, tirando efeitos de graça da sua própria gaguez”.

O livro mostra Machado, o gago, com a língua afiadíssima, para ao fim nos deixar morrendo de vontade de participar da sua roda de conversa na Livraria Garnier. “Se Machado de Assis não fosse um tímido, ninguém com mais impetuosidade nem com mais brilhantismo teria atacado de frente os ridículos da sociedade. Bastava para isso que ele escrevesse como falava”, diz Artur Azevedo.

Aqui ele dá uma última estocada nos fãs de Machado neste distante século 21 — e, devo dizer, nesta tradutora, que se angustia por não poder jamais interrogar o autor. “O melhor, talvez, da sua obra ficou inédito, e para conhecê-lo seria preciso ouvi-lo.”  

Quem escreveu esse texto

Flora Thomson-DeVeaux

Prepara nova tradução de Memórias póstumas de Brás Cubas para o inglês.