A poeta portuguesa Florbela Espanca, em 1910 (J. M. Espanca/Photo Calypolense/Divulgação)

Encontro de Leituras,

Sem tutor nem padrinho

Envolta em mistificações, obra de Florbela Espanca afirma sem disfarces o desejo feminino e dispensa bênção de grandes nomes da poesia

01abr2025 • Atualizado em: 31mar2025 | Edição #92

Quando uma editora brasileira se dispõe a publicar os Sonetos de Florbela Espanca, podemos comemorar, com certo encantamento, esse grande feito. Quem sabe, contra a vontade da poeta — sempre tão rebelde, inquieta e desafiadora —, uma publicação desse naipe dê a entender ao público-leitor que tal autora rompeu as portas do panteão, as barreiras do tempo e dos cânones, e começa — ou continua — a ser reconhecida como uma estrela-mor. O que é deveras uma glória!

Assim seria, se a atual edição da José Olympio não estampasse uma pecha que, em Florbela, parece infalível! Há sempre à disposição um adendo de última hora que, na busca por enaltecê-la, acaba por miná-la. O afã publicitário de não deixar dúvidas sobre a grandeza artística da nossa alentejana — que, durante todo o seu trajeto de vida e de post-mortem, tem padecido das mais cruciais injustiças e das mais empenhadas ficcionalizações — volta a ser posto em prática. 

Desta vez, inclui-se no rol das mistificações outra personagem de envergadura, aqui chamada a fim de oferecer seus préstimos e testemunho: nada menos que Fernando Pessoa! A menção ao nosso múltiplo órfico comparece na atual edição, para, digamos, não deixar dúvidas; para canonizar Florbela, para dar-lhe uma bênção específica e rara. E eis que os dois, Florbela e Pessoa, que nunca se conheceram, são assim de repente arremessados para o mesmo alçapão de prestidigitações — queda injusta para cada um deles, pois a convergência é falsa. 

Lá de onde se encontram hoje, tanto um quanto outro devem estar fazendo recíproca cara de muxoxo e desagrado dessa ilação de contiguidade (agora) familiar. Ela, orgulhosa demais para aceitá-la; ele, fulo de raiva por ser usado por mãos alheias.

Sim, o volume de Sonetos de Florbela Espanca publicado agora estampa na quarta capa os seguintes dizeres: “‘Alma sonhadora, Irmã gêmea da minha’. Fernando Pessoa, no poema ‘À memória de Florbela Espanca’”.

Tal informação — equivocada! — convoca um novo cúmplice, o mais ausente e, entretanto, o fidedigno autor do poema e da constatada relação íntima dessa “irmandade”: o judeu ucraniano, vegetariano, poeta, livreiro, ator, cantor, naturista Eliezer Kamenezky (1888-1957) — fato tornado público desde 2000.

O seu périplo poético parece comprovar que o único espaço possível ao feminino é o de estar fora de lugar

O referido poema está depositado no Espólio Fernando Pessoa da Biblioteca Nacional de Portugal e, de acordo com os estudos do grupo de investigadores da Arca de Pessoa, pertence ao livro Alma errante , de Kamenezky.

O que espanta é que o mal-entendido já havia sido apontado porque o trecho, justamente, já fora usado, com prováveis mesmas intenções marqueteiras, na edição de uma antologia da editora portuguesa Manufactura, em 2021. Vendia-se, com o livro português (e agora com o volume brasileiro), uma falsa aproximação poética entre Pessoa e Florbela…

No caso da atual edição brasileira, essa informação contamina ainda a orelha do volume, acrescida de outras desatenções: como Florbela teria “publicado em vida” todos os textos da coletânea — como ali se afiança — se ela morreu em 1930 e se Reliquiae data de 1931 e o Charneca em flor é póstumo? O soneto “Charneca em flor”, dedicado a José Emídio Amaro, tem como título original “Minha terra” e não aquele que o poeta e ensaísta Guido Battelli lhe atribuiu, “Pobre de Cristo” — que, aliás, desafina com o célebre amor-próprio da nossa escritora. A obra poética de Florbela tem passado por estabelecimentos de texto e por acréscimos oferecidos por novos acervos; todavia, o organizador parece não se dar conta dessa densa história de discussões edócticas colada a tal produção.

A propósito do marketing de ambas as publicações, creio que caem bem as anotações perspicazes de Émile Zola sobre o mercado de arte ainda no século 19. Segundo Iná Camargo Costa (no prefácio àsobras críticas de Émile Zola), este mercado era pautado pela especulação financeira, manipulado por agentes medíocres que se passavam tanto por críticos quanto por aferidores dos processos seletivos que promoviam as obras e os pintores.

Malgrado esse desarranjo despropositado e grave desta edição, não ficam ofuscados os ensaios de José Régio (de 1950) e o de Leonardo Gandolfi (de 2024), de natureza tão diversa. O de Régio vem prenhe do contexto do affaire da época, em interlocução com o de Jorge de Sena, e salpicado de um cenário de intrigas salazaristas erguidas para alfinetar o inconformado clandestino da cimentação do busto de Florbela no Jardim Público de Évora, um ano antes.

Modernidade

Gandolfi vasculha em Florbela um outro território — o que não há (“o espaço do inexprimido”); ou seja, o do poder feminino (que a poetisa luta por localizar dentro do patriarcado) — e o elege como um fato literário moderno, o de construir e partilhar subjetividades no feminino. A afirmação “sem disfarce, do desejo feminino”, o questionamento da tradição literária relativa ao amor (e ao lugar de “objeto” oferecido à mulher), a “perda” como lugar de “encontro”, a desobediência à forma simbólica do poder, o repúdio à aceitação do discurso feminino como construção masculina são os passos incisivos para o alcance dessa escrita.

A poesia de Florbela representaria, assim, “a possibilidade de uma nova episteme poética no século 20. Essa a sua modernidade”. De modo que o seu périplo poético parece comprovar que o único espaço possível ao feminino é o de estar fora de lugar, fora da vida. A mulher é um ser irrepresentável, visto que o feminino se mostra, como acentua Luce Irigaray, o gênero que não tem gênero, ou, como o vê Lacan, um não ser, “a não-toda”.

A erupção de uma identidade por dentro do baldio e inexistente é a missão poética que situa Florbela na plêiade artística que inventou a modernidade em língua portuguesa. E isso a dispensa — definitivamente! — de contar ou não com o aval de Pessoa ou de quem quer que seja. Ela não precisa de tutoria nem de padrinhos, embora tenha percorrido e perscrutado, com todo o interesse, cada um dos nomes com que a batizaram, conferindo em si cada atribuição a fim de conhecer e explorar a sua própria.

Quem escreveu esse texto

Maria Lúcia Dal Farra

Patrona de cadeira na Academia Botucatuense de Letras, é autora de Livro de erros (Iluminuras).

Matéria publicada na edição impressa #92 em abril de 2025. Com o título “Sem tutor nem padrinho”

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