Política,
O que fazer?
Colaboradores da revista dos livros dão suas respostas para uma pergunta decisiva para o nosso tempo
01jun2020 | Edição #34 jun.2020Não partir para o impeachment
Luiz Felipe de Alencastro
Um ponto comum nas análises mais autorizadas sobre a pandemia concerne à extraordinária rapidez de sua difusão. Três meses após seu início, metade da população do planeta estava confinada. O impacto econômico global já se equipara à depressão de 1929, cuja retomada se prolongou por dez anos, aguçando a Era dos Extremos. Nas palavras de Kristalina Georgieva, diretora do Fundo Monetário Internacional (FMI), trata-se de “uma crise sem paralelos”. Em meados deste mês, o Bank of America previu uma queda de 7,7% do PIB brasileiro em 2020, gerando a pior recessão da história, destruindo centenas de milhares de empregos e esgarçando mais ainda o tecido social nacional.
Ao mesmo tempo, o país enfrenta um profundo impasse político. De saída se destaca a derrota devastadora do centro e da esquerda nas eleições de 2018. A queda de Geraldo Alckmin no primeiro turno deve ser posta em paralelo com o rápido fluxo do eleitorado de classe média para a candidatura de Bolsonaro, que já era havia meses, em todo o país, a preferida dos eleitores com grau de ensino superior. Na mesma ordem de ideias, é preciso notar a diferença de votos do pt no estado de São Paulo no segundo turno: enquanto Dilma obteve 8,5 milhões de votos no segundo turno em 2014, Haddad recolheu 7,2 milhões em 2018. O PMDB/MDB, apontado na altura do parlamentaço do impeachment como a solução para pacificar o Brasil, também foi à breca em 2018, elegendo somente três governadores (AL, PA e DF), em contraste com sua pior performance até então, em 2002 e 2010, quando elegera cinco governadores.
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No que concerne ao PT, o estrago teve outras dimensões. A derrota desproporcional de Haddad no segundo turno no Rio de Janeiro, estado que garantira, junto com o Nordeste, a vitória do pt nas eleições presidenciais precedentes, foi radical: Bolsonaro teve a maioria dos votos nos 92 municípios do RJ (menos em três) como também a maioria dos votos dos pobres e dos negros no estado.
Tal constatação mostra o fato mais relevante da história política brasileira: a cristalização em torno da candidatura de Bolsonaro de um eleitorado de extrema direita, que, apesar da acumulação de catástrofes, deve garantir a presença do atual presidente no segundo turno em 2022. Nos seus dois séculos de história constitucional, as Américas não tinham conhecido um fenômeno similar. Fujimori virou para a extrema direita, em 1995, depois de ser reeleito presidente do Peru. Ao contrário da maioria dos países onde a extrema direita se consolidou, não há no Brasil a mais remota ameaça de descontrole da imigração, tema favorito dos radicais do Hemisfério Norte.
Bolsonaro fez uma campanha de extrema direita sem firulas. O fato mais emblemático foi sua sabatina no programa Roda viva em 30 de julho de 2018. No final, os debatedores fizeram a pergunta manjada, à qual até candidatas a Miss Brasil devem responder: “Qual o seu livro de cabeceira?”. As misses geralmente respondem O pequeno príncipe; os políticos antes respondiam Meu pé de laranja lima. Muitos escolhem também a Bíblia, seja o livro inteiro, seja o Velho ou o Novo Testamento. Bolsonaro, sem hesitar, indicou A verdade sufocada, do coronel Ustra, marcando assim sua distância da narrativa da direita conservadora.
Beneficiando também Witzel no Rio de Janeiro, Zema em Minas Gerais, Major Olímpio — senador mais votado da história de São Paulo — e dezenas de outras lideranças espalhadas pelo país, a emergência do eleitorado de extrema direita em torno de Bolsonaro é mais marcante que o ascenso do PT, cuja marcha para o poder trazia traços trabalhistas e se prolongou por duas décadas. Toda reflexão sobre partidos políticos e democracia no Brasil passa pela compreensão do surgimento da liderança de Bolsonaro, de sua eleição e de sua persistente popularidade.
Enfim, desenham-se os fatores que abalam a identidade nacional, forjada desde o final do Estado Novo e que persistiu na ditadura até o presente. Bolsonaro é notoriamente autoritário e sociopata. A cultura do ódio que ele e seus partidários trombeteiam abala a sociedade. A frase tétrica com que ele, num misto de desprezo e cinismo, caracterizou seu próprio povo, falando da pandemia, ficará na história: “Eu acho que não vai chegar a esse ponto [ao dos Estados Unidos]. Até porque o brasileiro tem que ser estudado. Ele não pega nada. Você vê o cara pulando em esgoto ali, sai, mergulha, tá certo? E não acontece nada com ele”.
Contudo, nas atuais circunstâncias, sou contra o impeachment, tornado aleatório com o enfraquecimento de Rodrigo Maia e a aliança de Bolsonaro com parte do Centrão. Interpreto os últimos surtos autoritários do presidente como sinais de fraqueza política (no Congresso, na Federação, na opinião pública, em parte da hierarquia militar que afirmou defender a Constituição, na imprensa, na comunidade cientifica e no establishment agora descrente da dobradinha Guedes-Bolsonaro), e não como uma agregação de forças radicais para perpetrar um golpe. Os governadores de São Paulo e Rio de Janeiro têm esperança de surfar na vaga bolsonarista em 2022 para chegar ao Planalto. Há também o destaque do Consórcio do Nordeste, demonstrando a dinâmica eventualmente conservadora, mas antiautoritária da dinâmica federalista brasileira.
Sobretudo, considero Hamilton Mourão um inimigo fatal para a democracia no médio prazo. Com a saída de Bolsonaro, Mourão assumiria constitucionalmente com o apoio da maioria das Forças Armadas e dos setores dissidentes do bolsonarismo. Contaria ainda com a mobilização política e eleitoral do movimento de massa extremista que elegeu Bolsonaro. Mourão imporia ordem, método e continuidade à emergência de um eleitorado majoritário extremista e eleição pelo voto popular de um presidente de extrema direita.
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Fazer faxina
Gregorio Duvivier
Fazer a cama, faça chuva ou faça sol. Fazer a mesa. Fazer faxina. Fazer anos. Se fizer aniversário. Fazer um zoom. Fazer hora. Fazer dia. Fazer mês. Fazer um hangout. Fazer live. Fazer a fama. Deitar na cama. Fazer das suas as minhas palavras. Fazer faxina. Fazer a barba. Fazer faxina. Fazer a bainha das calças. Fazer faxina. Fazer a egípcia. Fazer a louca. Fazer a Teresinha — assustada, dizer não. Fazer amanhã o que você pode fazer hoje. Fazer hoje o amanhã. Fazer questão de fazer as pazes. Fazer tempestade em copo d’água. Fazer fermento, fermentar farinha, fazer o pão que o diabo amassou. Fazer desfeita. Fazer a festa. Fazer faxina. Fazer de conta que faz as malas. Fazer vista grossa que não fez faxina. Fazer exercício. Fazer nas coxas. Fazer um fuzuê. Fazer faxina. Fazer vaquinha. Fazer por onde. Fazer faxina. Fazer jus, fazer justiça. Com as próprias mãos, fazer sentido. Fazer a cama. Fazer faxina.
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Fazer política
Eugênio Bucci
O que fazer? Ora, fazer política. Deter o fascismo. Destituir Bolsonaro. Combater a mentira e o fanatismo. Defender o mínimo da democracia que nos resta — uma democracia desigual, racista, injusta, classista, mas melhor do que a selva autoritária, obscurantista e violenta que o porta-voz das milícias quer impor à sociedade. Fazer política: dialogar com quem é de diálogo, fazer alianças. E aí vem outra pergunta: como fazer o que é preciso fazer? Ora, por meio de uma frente democrática antifascista que promova o impeachment e depois siga mobilizada para vigiar o substituto. Fazer política nos debates públicos, fazer política nas instituições, fazer política no Parlamento. Quanto às esquerdas, devem se engajar com alma nessa frente, mas sem abrir mão de sua identidade, da sua independência e da tarefa de se renovar para se apresentar de forma limpa nas eleições de 2022 — eleições, por sinal, que só uma frente democrática antifascista poderá nos assegurar.
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Ouvir as pequenas vidas que resistem
Jarid Arraes
DUAS CADEIRAS
conte para mim
sobre como tudo anda difícil
e nem a cerveja se paga
e nem a escrita se cria
me conte
sobre os imprevistos
e as curvas fechadas
sobre os livros
abandonados
as exposições vazias
de significado
me fale sobre a rotina
que esmaga
com as palavras que
sempre as mesmas
se usa
e sobre a cidade cinza
os rios espumantes
o quilo de sal
caro
que se come
me conte
sobre as temperaturas
altas e os corações
apáticos
sobre as relações
de supermercado
os produtos
políticos
eu quero ouvir
sobre as pequenas vidas
os pequenos instantes
de vida
que ainda resistem
aí
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Procurar a boa utopia com alegria
Lilia M. Schwarcz
Nunca na história do Brasil vivemos uma crise como esta. Uma crise profunda que é, ao mesmo tempo, política, econômica, da moral e da saúde. Nessas horas, fica imensa, e quase intransponível, a diferença entre o que “desejamos fazer” e
o que “é possível realizar”. Eu queria um “outro Brasil”: um país mais justo, plural, generoso, tolerante e inclusivo. Um Brasil menos odioso, violento, e que não teria no poder um punhado de senhores de classe média, brancos, misóginos, autoritários, racistas e prepotentes.
Eu queria um Brasil que aprendesse a se enlutar diante da perda de pessoas conhecidas ou desconhecidas, diante das tantas vidas interrompidas e que poderiam ser o que não foram. Eu queria que o sofrimento diante do “outro” fosse nosso também e que pudéssemos praticar de forma plena o ritual da morte, que ajuda a chorar e a reconhecer nossas inúmeras perdas e permite conectar estranhos em luto.
Eu queria uma nação que não transformasse remédios em milagres escondidos embaixo do arco-íris, que não tratasse da vida dos doentes como uma questão ideológica. Eu gostaria que superássemos nossas diferenças em nome de um pacto pela democracia, termo tão mal utilizado por nossos governantes, que não têm qualquer compromisso com a liberdade de expressão — só a usam como subterfugio retórico —, através do diálogo e do encontro com a diferença que só nos fará melhores.
A lacuna entre esse Brasil da utopia e o Brasil real é enorme. Mesmo assim, se tivesse que apostar “no que fazer”, diria que queria de volta um outro Brasil, onde pensar no futuro significasse acreditar na boa utopia de uma nação mais plena, e que, a despeito dos seus inúmeros problemas, consegue imaginar para si uma sociedade ideal, fundamentada em leis justas, em instituições verdadeiramente comprometidas com o bem-estar da coletividade e na qual a saúde, é, de verdade, um direito ao alcance de todos.
Enquanto nada disso é possível, eu fico com o poeta Oswald de Andrade, que garantiu que “a alegria é a prova dos nove”.
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Escrever, ler, compartilhar
Milton Hatoum
Não é hora de dispersão. O governo civil-militar-miliciano realiza com escárnio e violência seu projeto de destruição dos fundamentos democráticos e de direitos civis. Para derrotar a extrema direita, é preciso fazer o que for possível, até os limites do impossível. A omissão e o silêncio serão cúmplices do nosso fracasso. É preciso participar de redes solidárias e tentar ampliá-las. Agora mesmo há milhões de brasileiros ameaçados por milicianos, policiais, garimpeiros, grandes fazendeiros. É preciso dizer quem são os mais vulneráveis: mulheres, homens e crianças pobres, negros, indígenas.
Esse é um dos grandes crimes deste governo, cujos membros deviam ser julgados e condenados. Devemos falar sobre esses crimes e divulgá-los. É um erro pensar que a voz dos artistas é irrelevante. Se fosse assim, o fascismo e o nazismo não teriam perseguido e banido intelectuais, escritores, jornalistas, professores, artistas. E é exatamente isso que está acontecendo neste país governado pela extrema direita miliciana. Cada voz se somará a outra voz. Cada texto escrito e poema lido podem e devem ser compartilhado. Como escreveu João Cabral: “Um galo sozinho não tece uma manhã/ ele precisará sempre de outros galos.”
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Formar uma Frente Democrática
Heloisa Murgel Starling
Em um livro publicado em 2018, intitulado Tyrant — Shakespeare on Politics (Tirano — Shakespeare sobre política, W. W. Norton & Company), o historiador americano Stephen Greenblatt fez uma releitura das peças de Shakespeare com o objetivo de analisar a ascensão do tirano. Com um olho no passado e outro nos dias atuais, Greenblatt argumenta que um tirano não chega ao poder sem cumplicidade generalizada. Sua ascensão é viabilizada por partes da sociedade e da elite que têm capacidade e disposição para emprestar apoio e tornar possível essa ascensão. São os “viabilizadores cínicos”, define Greenblatt. Eles sabem que o tirano não é confiável, indiferente à verdade, conivente com a corrupção e cruel — por isso, são cínicos. Mas creem que o tirano é controlável politicamente e que, feitas as contas, tudo dará certo para eles e seus interesses.
Por analogia, o cientista político Sérgio Abranches enxergou aí uma nova ferramenta capaz de promover uma forma de intervenção política contrária a tirania. Se esse é o modo de um tirano se consolidar no poder, explica ele, é preciso encontrar com urgência, na sociedade, seu oposto — os “viabilizadores cívicos”. Um conjunto de pessoas que se tornam agentes fundamentais da vida pública. São eles que vão impedir o deslizamento para a tirania antes que seja tarde demais.
Sérgio Abranches tem razão. Precisamos ativar os “viabilizadores cívicos” para que atuem no Brasil, tanto no plano intelectual como no político. São os operadores do revigoramento democrático da nossa sociedade. Assumir o papel de “viabilizador cívico” é diferente de ser líder partidário ou candidato a uma eleição; ele opera para provocar a sociedade a se mexer politicamente com o propósito de garantir um futuro para a democracia.
Uma vez em ação, os “viabilizadores cívicos” se fortalecem reciprocamente e estimulam o sistema institucional democrático. E abrem espaço para outra tarefa imediata: a constituição de uma Frente sem limites rígidos, que não é político-partidária, mas organizada em torno de princípios e valores democráticos. Nela cabem formas distintas de participação e ativismo — a Frente é transgeracional e, provavelmente, em seu interior vão germinar projetos para o país.
Talvez caiba ser ousado e sonhar alto: ativar os “viabilizadores cívicos”, constituir uma Frente Democrática e criar o candidato da Democracia para as próximas eleições no Brasil.
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Lembrar que é um eclipse
Mário Magalhães
É o ocaso, murmuraste
Tu te enganas, eu te disse
Não confundas com pra sempre
O que passa, é eclipse.
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Construir, resistir, se indignar, sonhar
Arminio Fraga
O Brasil há décadas alterna bons momentos e retrocessos, com resultados medíocres: pouco crescimento, muita desigualdade, poucas oportunidades para a maioria. Somos prisioneiros de nós mesmos. Valores em crise, instituições estressadas, trevas. Tristeza geral, medo, incerteza e paralisia. Em algum momento a coisa vira. Construção a fazer. Alguma janela há de surgir. Por ora, resistir, sem perder a capacidade de se indignar e sonhar.
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Ler Benjamin e Baudelaire
Maria Rita Kehl
Tenho feito viagens por dentro de minha casa. Penso no nome do livro de Xavier de Maistre: Voyage autour de ma chambre (Viagem em volta do meu quarto, Alicia Editions). Aconteceu que, logo no começo da quarentena, a proprietária do consultório que eu dividia com mais um monte de amigos psicanalistas — oito, para ser mais exata — pediu a casa. Tivemos que nos mudar, mascarados e enluvados, em abril. Ao que tudo indica, não pegamos nem transmitimos Covid-19.
Da garagem, onde foram empilhadas caixas e caixas de livros, tenho que subir dois lances de escada para chegar ao quarto que chamo, pretensiosa, de biblioteca. Considero essas dez ou quinze subidas diárias, carregando livros, como minha academia. Nunca fiz academia. Meu esporte era andar; agora é subir e descer escadas.
Mas os livros não cabem, todos. No consultório ocupavam três salas, aqui terão direito a uma. Tarefa dura a de me decidir de quem (não de quais: de quem) vou me desfazer. De Freud, evidentemente não. De Lacan, esse pedante indispensável, também não. Alguns autores lacanianos sobem as escadas, autorizados a ficar; deixo nas caixas para doação só os lacanianos que tentam ser ainda mais pedantes que o mestre.
Gosto de história, música brasileira e de alguma filosofia. Mas gosto mesmo de Walter Benjamin, o filósofo viajandão que integrou o grupo autodenominado Escola de Frankfurt até que se encantou por Baudelaire e pela Paris do século 19 onde o poeta flanava — Benjamin era outro flâneur. Daí, Adorno e Horkheimer deixaram de publicar os textos dele na Revista de Estudos Sociais. Caretões. Benjamin e Baudelaire são ótimas companhias quando canso de carregar caixas e de varrer o chão. Deixo aqui um poema dele que tem tudo a ver, não tanto com a quarentena quanto com o surto de maldade e despeito que assola o país desde as eleições de 2018.
O Albatroz.
As vezes, por diversão, os homens do convés
Capturam o albatroz, vasto pássaro dos mares,
que segue, indolente companheiro de viagem
o barco que desliza sobre abismos amargos.
Com custo eles o colocam no convés
Que estes príncipes do azul, sem jeito e envergonhados
Deixam penosamente as grandes asas brancas
Como remos, se arrastando ao lado deles.
Esse viajante alado como é sem jeito e fraco!
Ele, outrora tão belo, como é feio e engraçado!
Um espeta seu bico com um atiçador de fogo
O outro imita, briaco, o claudicante que voava!
O Poeta é como esse príncipe das nuvens
Que enfrenta a tempestade e se ri do
Exilado no chão, entre as gargalhadas
Suas asas de gigante não lhe deixam andar.
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Garrinchar o pensamento
Luiz Antonio Simas
Inventar terreiros, bater bola com os assombros da vida, descer aos subterrâneos da imaginação para tocar tambores, afinar cavacos, pontear violas, rogar e blasfemar ao deserto sem estrelas da noite grande. Tomar um banho com as folhas de Ossain, escutar Luiz Gonzaga, imaginar zelação cortando o Araripe, entender os aforismos de sobrevivência dos pontos de seu Zé Pelintra, garrinchar o pensamento, encarar o horror, arriar o padê do dono da rua e fechar o corpo ao desencanto, para o início da grande aventura da reexistência ou morte!
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Ouvir os índios
Pedro Cesarino
A vida em isolamento exige uma repactuação dos vínculos. É necessário estender o afeto para a formação de novos laços comunitários, criando redes para enfrentar o esfacelamento da economia e do Estado. A comparação com os povos indígenas mostra-se inevitável. Afinal, esses tempos começaram há mais de quinhentos anos para eles, que não se deixaram sucumbir.
Como se preparar para o enfrentamento de situações-limite como a atual? Estabelecendo uma revisão profunda dos pressupostos que nos conduziram a esses desdobramentos distópicos e reconhecendo os paradoxos da continuidade física entre pessoas que fazem parte de um mesmo e desigual tecido social. Como escreveu Judith Butler, pessoas estão relacionadas através da superfície das coisas, passando a evidenciar, via o perigo do contágio, todas as assimetrias da cadeia produtiva que condenam muitos à exposição e a sistemas de saúde saturados, enquanto outros seguem em quarentena. Mais um desdobramento da herança escravista e racista que impulsiona a pandemia para patamares assustadores e escancara o nosso fracasso em reinventar comunidades para além das divisões sociais. Esse fracasso está na origem das atuais pandemias: da Covid-19, do assassinato da juventude periférica, da destruição da floresta e de seus povos…
A pandemia viral, entretanto, não pode ser compreendida apenas em chave antropocêntrica, pois suas origens e seus efeitos são tão complexos que não permitem mais compreender o humano como uma entidade invulnerável, exclusiva ou autônoma. Tais formas apontam para a dimensão imprevisível das complexidades transespecíficas que definem as interações genéticas entre multiplicidades virais e organismos humanos. Torna-se necessário também redefinir o sentido de comunidade para além de uma humanidade obsoleta e aprisionada por um sistema de produção insustentável. O xamanismo ameríndio, esse território tão desconhecido quanto estigmatizado, é exatamente uma arte da diplomacia transespecífica: uma forma de mediação entre agências e subjetividades que atravessam os corpos humanos, para garantir a vida saudável entre parentes. Partindo do pressuposto de que corpos humanos são por natureza vulneráveis, xamãs negociam com entidades análogas àquelas que chamamos de vírus ou de bactérias, pois sabem que disso depende o futuro de suas comunidades.
Se os povos indígenas são experientes — mas nem por isso menos vulneráveis — no enfrentamento de pandemias, o que dizer de outras parcelas da população atadas à estabilidade do trabalho e da produção? A presente crise deve ser concebida como um ensaio preparatório para outras catástrofes vindouras que imporão um realinhamento profundo de nossos modos de existência. Nesse novo horizonte arredio, a incerteza e a imprevisibilidade têm sido tratadas como se fossem provisórias quando, na realidade, passarão a ser a regra.
As novas formas de reflexão, de ação e de criação de vínculos precisarão ser realizadas a partir dos resíduos do atual sistema produtivo. Terão, contudo, o desafio de lidar com a violência e a ignorância que tomam de assalto o poder em sua tentativa de estabelecer os fascismos contemporâneos. Toda vez que penso ser impossível tal tarefa, lembro-me dos coletivos da floresta que já atravessaram crueldades inimagináveis, sem, contudo, perder de vista a dimensão dos vínculos afetivos sobre os quais muitas de suas comunidades se sustentam.
Parece, assim, que apenas um modo de existência de baixo impacto e a permanente negociação entre agências humanas e mais do que humanas poderiam dar conta das instabilidades que vieram para ficar. Do contrário, permaneceremos reféns do horizonte de cronificação da crise e da tentativa de encontrar soluções emergenciais para manter o funcionamento de estruturas produtivas construídas sobre a velha imagem do controle e da desigualdade. Se todas as civilizações foram feitas para ser destruídas, então caberia perguntar se e como esta, de dimensão mundial, conseguirá lidar com a versatilidade e a justiça que os tempos atuais demandam.
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Ganhar tempo
André Perfeito
Por paradoxal que pareça, esta é uma crise simples cuja variável de ajuste é o tempo. O que precisamos fazer é “comprar tempo” fazendo o Estado garantir o óbvio: que iremos sobreviver.
A questão é que comprar tempo custa, e o Estado tem que garantir que quem vai pagar por isso não sejam os mais pobres, que não têm mais tempo para nada. Cabe à nossa comunidade determinar uma forma de quitar a conta. Esta crise trágica é uma oportunidade rara para articular novos nexos.
Sempre dizem que economia é trocar o pneu do carro em movimento. Pois bem, ele parou…
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Romper o imobilismo
Rafael Mafei Rabelo Queiroz
Ao mesmo tempo em que a pandemia escancara a inaptidão e a propensão de Bolsonaro para atentar contra os limites tanto de civilidade como de constitucionalidade, a paralisia social que ela impõe cria um perigoso salvo-conduto para seus crimes. Nesse contexto, é mandatório que repensemos as condições de legitimidade de reações efetivas, como o impeachment. O lugar-comum de que “povo na rua” é condição para impedir Bolsonaro não tem mais lugar neste novo mundo pandêmico. “Ninguém é obrigado ao impossível”, diz um velho brocardo, e o povo nas ruas, aglomerado, será uma impossibilidade por meses, talvez anos. Tudo precisará ser repensado, inclusive a aferição da legitimidade social para um impeachment: pesquisas de opinião, avaliação de impacto nas redes e formas alternativas na criação de consensos precisam ser seriamente consideradas. Enquanto seguirmos nos condenando a um imobilismo que não tem prazo para acabar, Bolsonaro farejará nossa paralisia e não titubeará em aproveitar-se dela para seguir roendo a corda das instituições que sustentam nossa democracia.
A pandemônia
Leonardo Fróes
Pois é, saí fininho por aí como um rato
amedrontado mascarado se esgueira
pelas sobras do mundo: terra plana.
Nem monturos de lixo nem bagaços de farra
nem destroços de guerra se avistavam
nos espaços desertos da cidade.
Andei sem sombra, pois nada a mim se contrapunha,
carros não corriam como baratas tontas
(pilotados pelo estrondoso furor dos motoristas)
e as motos temerárias que antes saracoteavam nas pistas
como corcéis medievais cumprindo seus belicosos papéis
não tinham na desolação dos cenários
mais vez nem voz. Nenhum de nós, a não ser eu, hélas,
que era minha própria e imprópria testemunha,
se aventurava nesse dia
a ver que a máquina do mundo enguiçou.
Alguma coisa estava acontecendo…
Os soberbos edifícios calados
enfileiravam-se inertes tristemente.
As torres industriais não vomitavam
a fumaceira encardida dos seus venenos.
À falta de fiéis, ninguém vendia salvação nas esquinas.
Fecharam-se os bordéis, os bares e os bazares, os bancos.
Ninguém se atropelava, mas quem se arriscaria a namorar,
se a contaminação da pandemônia estava à solta e invisível?
Políticos artríticos não se dispunham
(talvez enfim de si envergonhados)
a sacar na sacada os microfones blindados
que filtram seus discursos pomposos de ursos de circo treinados
para enganar multidões de anestesiados otários.
Pude olhar para o ar, que estava limpo
e onde os passarinhos de sempre dedilhavam
seus trinados alegres pespontados
nos sadios arabescos do voo em liberdade.
Pude olhar para as nuvens, que aviões não rasgavam,
desenhando no fundo do infinito, tão maior do que tudo,
suas formas de sonhos que se consolidam e esgarçam.
Alguma coisa estava acontecendo,
porque um fio de luz, tão de manhã
no coração das trevas, iluminou minha presença,
bateu asas nos olhos e sumiu.
Matéria publicada na edição impressa #34 jun.2020 em maio de 2020.
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