Literatura brasileira,

Tempo de derrotas

Segundo volume de trilogia criada por Milton Hatoum narra o amadurecimento de jovens na fase mais aguda do governo militar

01dez2019 | Edição #29 dez.19/jan.20

O aguardado Pontos de fuga de Milton Hatoum, o segundo volume da trilogia O lugar mais sombrio, retoma a história de Martim, iniciada em A noite da espera. Lá como cá, a narrativa se constrói num vaivém que atravessa tempos e espaços. O primeiro livro da série começava em Paris, em 1977, e terminava na rodoviária de Goiânia, em 13 de dezembro de 1972 (aniversário de quatro anos da promulgação do AI-5). A história recomposta cronologicamente, no entanto, se iniciava antes disso, em 1967, com a separação dos pais de Martim, quando o menino, de uma hora para outra, se vê obrigado a mudar de cidade e viver apenas com o pai, com quem tinha uma relação distante e difícil, já que Lina, sua mãe, diz que não pode levá-lo consigo. A separação de mãe e filho é o cerne da trilogia, que se passa nos piores anos da ditadura militar brasileira.

Pontos de fuga começa onde termina o primeiro livro, ou quase: no dia seguinte (14 de dezembro de 1972) e já em São Paulo. Avançamos e recuamos na história de Martim: se no primeiro romance ele havia sido obrigado a, ainda adolescente, mudar de cidade, indo para a capital federal, agora, adulto, precisa voltar à sua cidade natal. Quem organiza a narrativa, qual um demiurgo a dispor de diários, cartas e anotações de amigos, é o próprio Martim, que se dedica à tarefa no exílio em Paris, já no fim dos anos 1970.

Se em A noite da espera se narrava a partir de Brasília e da capital francesa, nesse Pontos de fuga o eixo oscila de São Paulo a Paris, de onde o narrador-demiurgo reúne lembranças suas e de seus companheiros para contar a história de tempos desordenados: “Sem a memória dos outros, eu não poderia escrever”, Martim havia dito em A noite da espera.

Permanecem, contudo, a busca pela mãe, que a certa altura para de lhe mandar notícias, e a violência do Brasil ditatorial, em que pessoas desaparecem. Lina não dera indícios de participação na luta política — seu sumiço parece ser, num primeiro momento, de ordem afetiva: a impossibilidade de estar ao lado do pai de Martim por estar apaixonada por outro homem, o artista plástico com quem vivia então, não se sabe ao certo em que lugar.

Essa indeterminação nas razões de Lina é um dos achados da trilogia porque retoma o enigma do desejo feminino (na indagação freudiana “afinal, o que quer uma mulher?”), recompondo-se na dúvida em relação ao afeto materno: ela escolhe não viver mais com o filho porque ama um homem que não é seu pai, e nessa relação não há espaço para uma terceira pessoa? Ou decide deixá-lo aos cuidados do pai porque opta pelo engajamento político? Pouco importa se, ao final, a história de Lina for outra. As possibilidades dadas pela narrativa até o segundo volume se equilibram nesses polos, que supõem um — chamemos assim — engajamento passional.

Eterno exílio

Em Pontos de fuga, Martim torna-se estudante da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, onde faz amigos que o levam a morar em uma república na Vila Madalena. Novos personagens, alguns mencionados no primeiro volume, ganham aqui importância e convivem com os amigos saídos de Brasília. Alguns deles chegam a São Paulo e passam a fazer parte do círculo novo de Martim, que orbita em torno da poesia, dos livros e da arquitetura. Quando a situação política do país se torna mais dramática, os laços entre eles se estreitam.

A agitação das ruas e das pessoas, porém, parece quase não ressoar em Martim. Em A noite da espera havia um protagonismo claro do narrador. Nesse volume, Martim está entregue ao conhaque e ao desânimo. É como se ele, mais do que os outros personagens, se visse tomado pelo “tempo de derrotas” de que fala um de seus amigos, o Nortista. De fato, todos acompanham, de perto ou de longe, a deposição de Allende no Chile, o golpe na Argentina, em 1976, a morte, a prisão, a tortura e o exílio dos amigos.

O vaivém de tempos e espaços, que ganha intensidade em relação ao volume anterior, quase todo centrado em Brasília, aparece no esvaecimento de Martim como narrador e mesmo como personagem. Nas anotações dos amigos, o Martim que aparece é o que se exila na escrita, nas leituras e nas traduções. E, quando resolve tomar parte de um ato político, carrega um cartaz com dizeres que aludem à mãe e que só podem ser entendidos pela namorada, Dinah — era um protesto contra ela. Será preciso que um fato novo ocorra para que se suspenda o torpor em que ele vive, fazendo-o deixar o país, rumo ao exílio na França.

Antes disso, contudo, quando volta para São Paulo, Martim tem de reconstruir sua relação afetiva com a cidade. A rua da infância e do início da adolescência é o local que abriga a temida sede do doi-codi. É como se a paisagem em que viveu com a mãe, também ela, desaparecesse. Nesse sentido, é como se ele não pudesse voltar, como se estivesse destinado a um eterno exílio, a nunca encontrar sua terra mater.

Esse mesmo romance de finas camadas, que narra com sutileza a passagem para a vida adulta de jovens universitários ou recém-formados na fase mais aguda do governo militar, lançando mão de um mosaico de vozes para construir esse retrato de grupo, peca às vezes pelo pronto esclarecimento de pontos não explicados. É como se, para manter esticado o fio do grande mistério — o desaparecimento de Lina —, nenhum outro enigma, por menor que seja, pudesse perturbar a narrativa.

Em uma cena narrada no “Diário do Julião”, o artista circense companheiro de república de Martim encontra no banheiro uma tesoura e tufos de cabelo do amigo no bidê. Fica intrigado com a ação e bravo com a bagunça. Instala-se a dúvida sobre o que teria levado Martim a isso. Menos de duas páginas depois, em nova entrada de seu diário, Julião conta o que havia acontecido. É como se o arranjo narrativo fosse criado de modo a “limpar” a história dessas pequenas lacunas de enredo, para que o leitor não possa deixar de olhar para o que interessa naquele quadro.

É, aliás, ainda o mesmo Julião quem, em sua singeleza, aponta a dureza dos dias: “Podíamos ter nascido em outro tempo”. De certa forma, repõe a pergunta do Nortista: “Como viver num tempo trágico e numa terra trágica?”. Essa dúvida, que anima os dias de hoje, talvez seja o nosso ponto de fuga, para onde convergem as inquietações dos tempos atuais.

Quem escreveu esse texto

Rita Palmeira

É editora e crítica literária.

Matéria publicada na edição impressa #29 dez.19/jan.20 em novembro de 2019.