Economia,

Consumidos pelo consumo

Ensaio cultural explica processo que faz tudo se tornar mercadoria, inclusive esta resenha e o livro que ela comenta

13nov2018 | Edição #6 out.2017

Esta revista traz ofertas profusas de boas dezenas de livros — livros à mancheia, alguém diria. Títulos e resenhas disputam a sua atenção para persuadir você a comprá-los e, quem sabe, ler algumas páginas. Como absolutamente tudo — igrejas, remédios, passagens aéreas, jazigos —, os livros se oferecem como mercadoria. Até eles esperam que você os consuma, assim mesmo, como mercadoria.

O que não muda nada. Nenhum objeto, nenhuma imagem, nada circula a não ser como mercadoria, ela ocupou todos os espaços, diria Guy Debord, preencheu todo o campo do visível e atulha os interstícios temporais e espaciais, quase invisíveis, que separam uma letra da outra. A mercadoria define um tempo e uma cultura, seja num estádio de futebol, seja nos outdoors com a estampa de Che Guevara reinando sobre as ruas de Havana, seja no discurso desta revista, seja na capa do livro do qual esta resenha deve tratar.

Vamos logo a Cultura do consumo, de Isleide Fontenelle. Se você quer saber das novas encarnações da imagem da mercadoria, eis uma boa pedida. Em um livro anterior, O nome da marca: McDonald’s, fetichismo e cultura descartável (Boitempo, 2002), a professora da Fundação Getulio Vargas se ocupou da imagem da mercadoria. Agora, volta ao tema, num horizonte mais extenso e num plano teórico mais ambicioso: apresenta uma radiografia ampla e consistente do império da mercadoria, um inventário histórico e analítico da “cultura do consumo”. 

Por que se pode dizer que o livro é um inventário histórico? Porque descreve a cronologia e as contradições da construção da cultura do consumo. Embora saiba que estabelecer datas precisas é sempre um lance de risco, a autora convence ao demarcar a primeira fase da cultura do consumo entre os anos 1880 e 1945. Nesse período, ela mostra, os padrões das relações sociais vão se amoldando à mercadoria — em outras palavras, as relações de consumo passam a constituir a matriz da vida social.

Em fins do século 19, a mercadoria passa a ocupar o lugar de apresentar e representar o sujeito para os demais. A roupa de uma mulher “a” expressava, como diz Richard Sennett, lembrado por Isleide. A moda se expande, no embalo dos anúncios das lojas de departamentos, que também se expandem, e assim se moldam as feições da cultura, mais pela força da coisa à venda que por características das pessoas, que se dissolvem sob o domínio da mercadoria. Enfim, a publicidade (no sentido de advertising, não de propaganda) vira a base da cultura e cumpre as vezes de organizador comum dos repertórios culturais.

À medida que avança no tempo, Isleide volta os olhos para a sociedade estadunidense. E acerta. É na cultura dos Estados Unidos, síntese do mercado globalizado pelos hábitos de consumo, que ela identifica e decupa o mundo ordenado (ou desordenado) pela fruição da mercadoria. Assim, após a “primeira fase” (1880-1945), o livro mergulha no período seguinte, que vai até 1990, quando a indústria da publicidade alcança o apogeu e a imagem da mercadoria, ao revestir por inteiro o corpo da mercadoria, ocupa todo o campo do visível. 

Mais do que um inventário histórico, o livro é uma erudita reflexão sobre a cultura

Nas páginas finais, a autora ainda se detém sobre tendências mais recentes, como a do “consumo consciente” ou “consumo responsável”, que modificam — mas não revogam — a cultura do consumo. Abre-se uma terceira fase da cultura do consumo, em que a própria cultura, ela toda, converte-se em mercadoria. Nessa fase, fica mais nítido que, nas palavras da autora, “a marca é a realização plena do fetichismo da mercadoria”.

Mais do que um inventário histórico, porém, o livro é um inventário analítico — e, nessa dimensão, talvez seja mais cativante. A densa bibliografia agrega fontes vindas dos mais diversos campos do pensamento — que vão da história da comunicação à psicanálise, passando pela economia de Adam Smith ou Karl Marx e pela política de Antonio Gramsci, com escalas no marxismo que flerta com a pós-modernidade em David Harvey, ou no hiperliberalismo de Hayek —, num circuito em que argumentos estranhos conversam numa língua cristalina, fácil de acompanhar. O livro pode ser lido como uma erudita reflexão sobre a cultura, um ensaio cultural — gênero difuso em que a transdisciplinaridade é a regra.

Cultura

O zelo com a origem e as acepções de cada conceito não frustram o leitor. Todos os passos do raciocínio foram bem pesquisados e resultam bem demonstrados. O conceito de “cultura”, por exemplo, merece atenção. Isleide parte de Raymond Williams, um dos maiores pesquisadores dessa palavra em todo o século 20, e segue adiante com autonomia. É interessante lembrar que Williams dizia que culture era uma das duas ou três palavras mais complicadas da língua inglesa. Sem prejuízo do bom uso que faz de Williams, Isleide faz com que ela não pareça tão complicada assim, ao menos em português.

Ela não se contenta com o conceito de fetiche: a imagem da mercadoria revela-se também uma força material capaz de reordenar a ética, os valores morais, a estética e as teias de afetos e emoções. Para a autora, o consumo nos levou a migrar de um éthos do protestantismo — em que o trabalho tem parte com o sacrifício e, como tal, conduz à prosperidade — para um lugar menos penoso, em que o reino da necessidade cede lugar à supremacia do desejo. Nesse território, o prazer e o gozo se sentem em casa.

Aí, entra em cena o conceito de pulsão, demanda que, segundo Freud, o corpo apresenta ao aparelho psíquico e não há como deixar de honrar. Um dos pontos altos do livro está no subcapítulo “Uma teoria das paixões”. É lá que a autora fala mais em gozo. Numa das passagens mais imaginativas — e mais críticas —, ela aponta, nos protestos de Maio de 68, uma paradoxal reafirmação da cultura do consumo — e do gozo —, ainda que, em sua manifestação mais aparente, aquelas jornadas se levantassem contra o modo de vida burguês: “Insurgindo-se contra toda forma de hierarquia, bradando o ‘é proibido proibir’, buscando colocar a ‘imaginação no poder’, essa geração, na verdade, já protestava no espírito do gozo, ou seja, na lógica da liberação das pulsões, ainda acreditando na ideia de uma ‘cultura pura’, oposta à cultura de consumo, quando sua reivindicação já era produto dela”.

(O mesmo, ou quase o mesmo, nós pudemos ver aqui no Brasil, de novo, nas tais Jornadas de 2013, moduladas no espírito do gozo — até que depois se bifurcaram e se desnaturaram em, de um lado, marchas uniformizadas de vermelho, num léxico de esquerda oficial e chapa-branca, e, de outro, passeios vespertinos da classe média alta em congraçamento com as tropas da PM, em uma paradoxal passeata oposicionista muito bem acomodada no status quo.)

O gozo proporcionado pela mercadoria tem sede na membrana do imaginário, mas decorre também dos vetores que emanam da pulsão, na mais funda escuridão do corpo. Isleide Fontenelle atravessa esse desfiladeiro teórico na companhia de outros autores, como Bauman, Melman e Dufour. Ocasionalmente, admitamos, a leitura desperta sentimentos panfletários: abaixo o marketing! 

Em mais de uma passagem, a autora dialoga, num tom diplomático, com disciplinas como o marketing ou o branding — conjunto de procedimentos e ferramentas pelos quais se fortalece a imagem de uma marca na cultura do consumo. Compreende-se. O livro é uma obra de reflexão, não uma arma de combate ideológico — e, se o fosse, seria uma pena. 

Mesmo assim, as pulsões panfletárias se apossam do leitor que não tem como evitar proclamar: o marketing ou o branding, que alguns, imagine, chegam a chamar de ciências, não passam de ideologia em estado atômico. Há quem trabalhe com neuromarketing. Socorro. Alguém convoque as Jornadas de 1968. O gozo delas era menos obediente.

Outrossim (divina expressão), mesmo a pulsão panfletária, ganhando livre curso, não passaria de uma forma de gozo, e não nos levaria a nada. As saídas são improváveis, são mínimas, pois o consumo consome o humano, cada vez mais. Tanto que até ele, o livro de Isleide Fontenelle, está aqui, se oferecendo aos seus olhos, como mercadoria, como imagem da mercadoria — com valor de gozo e tudo.

Quem escreveu esse texto

Eugênio Bucci

Jornalista e professor, é autor de Incerteza, um ensaio (Autêntica).

Matéria publicada na edição impressa #6 out.2017 em junho de 2018.