Memórias do Chile,

Cenas do exílio

Cinquenta anos após o golpe no Chile, brasileiros refugiados na embaixada da Argentina em Santiago relembram o período de confinamento para escapar da repressão de Pinochet

31ago2023 | Edição #73

Vestida com elegância, Elisabeth Vargas chegou caminhando pela avenida Vicuña Mackenna ao lado do marido, Jorge, ele também na estica, até parar diante do número 41. Estudaram o palacete em estilo neoclássico, localizado na esquina de uma pequena rua. Uma caminhada de meia hora os separava do Palácio de La Moneda, que havia uma semana fora bombardeado por caças da Força Aérea chilena, dando fim ao governo democraticamente eleito de Salvador Allende.

O casal havia passado os últimos dias em literal luta pela sobrevivência, o que incluiu algumas noites na cela de uma delegacia, de onde escaparam num golpe de sorte, uma noite queimando papéis na lareira — e depois recolhendo no quintal o que ainda estivesse legível. Com o toque de recolher e a censura oficial, era difícil saber o que estava se passando. Ao dar uma volta até o centro para “tentar saber o que acontecia”, Elisabeth constatou: “Aconteciam cadáveres descendo o rio Mapocho e um medo imenso”. Os dois ainda passaram uns dias na maternidade onde uma amiga dera à luz, fingindo que eram da família. A casa do bebê havia sido invadida e vandalizada, e a biblioteca de seus pais fora queimada no meio da rua.

Embora os sons de tiros e helicópteros estivessem diminuindo desde o dia 12 de setembro (dia seguinte ao golpe), o clima estava a cada dia mais pesado. Estudante na Escola de Economia, Jorge ainda tinha como sair do Chile legalmente, mas Elisabeth, que entrara no país na clandestinidade, não teria para onde escapar. O Estádio Nacional já estava convertido em prisão e centro de tortura desde os primeiros dias do golpe.

Então Almino Affonso, um dos mais ilustres exilados brasileiros no Chile de Allende, informou Elisabeth que a embaixada da Argentina estava acolhendo pessoas em busca de asilo. No dia 18, uma semana depois do bombardeio do La Moneda, ela e Jorge decidiram considerar essa possibilidade. “Estávamos na calçada oposta, observando a movimentação dos militares”, ela escreveria, anos depois, num depoimento vibrante, disponível no site da Quatro Cinco Um.

Contra a opinião de Jorge, decidi atravessar e tentar. Não sabia se ia dar certo, e de repente surgiu uma oportunidade. Consegui passar correndo por trás dos carabineros que cercavam o palacete. Lembro de gritos, tiros e de mãos que me puxaram para dentro.

Jorge não entrou.

Ainda que a Argentina, que tinha um regime democrático, estivesse acolhendo os refugiados, os golpistas chilenos haviam cercado o prédio com soldados para prender ou matar quem tentasse entrar. Refugiar-se ali era perigoso, mas para muitos era a única opção. As listas com nomes de suspeitos eram divulgadas pelo rádio. Brasileiros que levavam uma vida “legalizada” no Chile logo perceberam que, aos olhos dos desconfiados vizinhos, pareciam tão perigosos quanto os companheiros que chegaram na clandestinidade, muitos deles com um passado na luta armada.

Depois de fugir da ditadura em seu próprio país e, em seguida, ver o sonho do governo socialista democrático do Chile ser bombardeado junto com o La Moneda, os brasileiros que haviam feito de Santiago “a capital do exílio” precisavam encontrar um território neutro e buscar uma maneira de deixar o país.

Os golpistas chilenos haviam cercado o prédio com soldados para prender ou matar quem tentasse entrar

Duas décadas antes, em 1954, países latino-americanos signatários da Convenção de Caracas concordaram que as missões diplomáticas poderiam ser consideradas espaços de asilo para refugiados políticos. Ainda que nem todos o tenham ratificado, o instrumento permitiu que muita gente, principalmente mais visada, com histórico de militância de esquerda ou banida no Brasil, se salvasse ao se abrigar numa embaixada.

O suíço-brasileiro Jean Marc von der Weid foi um dos organizadores daquilo que Fernando Gabeira qualificou como “um verdadeiro comando clandestino e apartidário que estava em atividade para salvar os brasileiros do fogo”. O grupo verificava a situação nas embaixadas e levava os refugiados de carro. A missão diplomática da Argentina não foi a única a abrir as suas portas — as da Itália, Panamá, França, México e Suécia também acolheram fugitivos.

Alguns dias antes de Elisabeth conseguir entrar, os namorados Liszt Vieira e Maria América Diniz tinham sido os primeiros brasileiros a se abrigar na embaixada argentina. Horas depois, carabineros começaram a fazer uma espécie de cordão de isolamento no portão. A partir daí, era necessário se arriscar em momentos de distração dos guardas. Flávia Cavalcanti, que também tinha nacionalidade argentina, puxou assunto com um guarda para distraí-lo enquanto seu companheiro Wilson Thimóteo correu para o portão. Com os bolsos cheios de remédios, ele fez barulho e acabou chamando atenção. “Viram e ameaçaram atirar. Ele caiu lá dentro. A essa altura, o cônsul estava na entrada e me recomendou que entrasse também. Eu tinha levado apenas cigarros”, conta ela. No grupo do casal Carlos e Tânia Fayal, um companheiro bom de briga resolveu sair no braço com um segurança enquanto os outros entravam.

A porta de entrada não era a única via de acesso ao palacete. Dezenas pulavam o muro nos fundos. O escritor Tabajara Ruas contou que fazia parte do grupo que ficava de plantão para dar suporte aos que chegavam por ali. Muitos que tentavam acabaram presos. “Cada pessoa que conseguia entrar era recebida com abraços e festejos”, contou Elisabeth. “O clima era de apreensão e euforia.”

Diário de bordo

Pelo teor de drama histórico, mas também pelas anedotas e peripécias vividas atrás dos muros argentinos, a experiência dos refugiados na embaixada se tornou um dos episódios mais lembrados da resistência aos sucessivos golpes de Estado na América Latina. Talvez por reunir uma boa quantidade de intelectuais, professores, jornalistas, artistas e outros expoentes do debate político e cultural, ganhou as páginas de livros e as telas.

Além do depoimento inédito de Elisabeth Vargas — que na redemocratização se destacaria como coordenadora de projetos sociais, nos anos 90 e 2000 foi diretora da ong UniSol e atualmente está impossibilitada de dar entrevistas —, Tabajara Ruas diz ter feito um relato fiel dos acontecimentos em seu romance O amor de Pedro por João. O advogado e sociólogo Liszt Vieira e o jornalista Fernando Gabeira, ambos ex-deputados federais, escreveram capítulos inteiros sobre o assunto em suas memórias da resistência — Vieira em A busca e Gabeira em O crepúsculo do macho, a continuação, atualmente fora de catálogo, de O que é isso, companheiro?. Ex-guerrilheiros, ambos estavam entre os prisioneiros da ditadura brasileira que foram trocados por embaixadores estrangeiros sequestrados por grupos armados: Liszt e Gabeira pelo da Alemanha.

A experiência na embaixada foi intensa. Depois da experiência do “exílio dentro do exílio” no Chile, Gabeira foi viver na Suécia e lá assinou o roteiro do filme de ficção Ambassaden, feito por Barbro Karabuda em 1974 para a tv pública daquele país. Hoje em dia, Gabeira acha o resultado “pueril, imponente demais”.

Já com a distância histórica de cinquenta anos, um novo longa-metragem ficcional atualmente em produção vai narrar a vida dentro da embaixada sob a perspectiva de uma criança. A diretora Flavia Castro tinha sete anos quando chegou no casarão com o irmão Joca, de quatro, e a mãe, Sandra Macedo, membro do Partido Operário Comunista. Acostumada à dureza da vida na clandestinidade, define aquela experiência como um dos momentos mais alegres da vida de exilada. “Acho que isso se explica pela convivência intensa com mais de cem crianças latino-americanas. Foi um encontro único, a gente ficava solto lá, numa liberdade enorme”. As vitrines reúne atores argentinos, uruguaios e brasileiros, e usou como locação uma mansão no Morumbi. As filmagens foram concluídas em julho e o filme, produzido pela República Pureza Filmes em coprodução com a Globo Filmes, deve estrear em 2024.

Para ela, falar das crianças que acompanharam os pais para fora do Brasil é tratar de um exílio invisível, sobre o qual ainda foram colocadas poucas imagens ou palavras. “Golpe é uma das palavras mais antigas da minha vida. Nunca tive que perguntar o seu significado, eu já sabia. Muitas vezes, ela vinha acompanhada da palavra cair. O golpe fazia as pessoas caírem”, reflete ela num artigo sobre seus nove anos “estrangeiros”.

Dois dias depois do golpe, Flavia estava no apartamento em que morava em Santiago com a mãe, o irmão e um casal, que só conhecia pelos nomes de guerra. O pai estava na rua. De repente, soldados quebraram as portas e as paredes de vidro, reviraram a casa e levarem o homem. Nelson Kohl — era esse o nome real — caiu. Foi um dos primeiros brasileiros assassinados pela ditadura recém-instalada.

Foi assim que Elisabeth, Flavia, Sandra, Liszt, América, Gabeira e Fayal se tornaram refugiados na embaixada da Argentina. Lá, eles se juntaram a gente como Ana María Bussi, sobrinha de Allende, e Ariel Dorfman — na época assessor cultural do presidente, o escritor argentino-chileno se salvou porque havia trocado, na véspera do golpe, o plantão noturno no Palácio de La Moneda com um colega. Ele registrou essa fase chilena em livros como o autobiográfico Uma vida em trânsito.

A Comissão pela Memória da Argentina costuma citar 826 refugiados no palacete da avenida Vicuña Mackenna, mas é difícil cravar, em razão de discrepâncias nos documentos oficiais. Cerca de 120 eram brasileiros. Um memorando do Exército, datado de 12 de outubro de 1973, e hoje disponível no site Documentos Revelados, lista 115 nomes, mas faltam ali todas as crianças e alguns adultos.

Com um misto de alívio por estarem protegidas e de medo do que estava por vir, restava àquelas centenas de pessoas se distrair e organizar a rotina da melhor maneira possível enquanto Buenos Aires não enviasse o salvo-conduto que os tiraria dali. A Argentina estava afundada em uma grave crise política e econômica, à espera do retorno de Perón do exílio. A expectativa de desenlace, conta Elisabeth Vargas, era para 6 de outubro.

Se no começo havia gente do staff diplomático para cozinhar e limpar os cômodos, com o passar do tempo os refugiados foram se vendo entregues à própria sorte, e se dividiram em grupos para dar conta das atividades. Mas ainda precisavam da ajuda de funcionários, de amigos do lado de fora e da Cruz Vermelha para abastecer a casa com comida e itens de higiene. Nas primeiras semanas um grupo chegou a fazer de um enorme tapete uma manta coletiva.

Também havia uma ordem de prioridade para grupos na hora de comer e dormir: os pequenos, as grávidas, os idosos e os doentes formavam o grupo zero, sendo os primeiros da fila. Esperando um bebê, América conta que convivia com sentimentos contraditórios. “Estava numa alegria só pela gravidez, mas procurava me alienar porque era angustiante demais ouvir os tiros lá fora”, relembra ela, até hoje grata pelo delicado apoio que recebeu de Sônia Lafoz. “Eu falava que logo ela estaria fora dali com o bebê nos braços. A palavra sororidade ainda não existia, mas a gente se ajudava como podia”, diz a ex-guerrilheira.

Flávia Cavalcanti estava no grupo que limpava os banheiros. Acordava às cinco da manhã para entrar na fila do banho e garantir água quente. No resto do tempo, cuidava dos doentes, que ficavam isolados, como era o caso de Wilson, lá dentro diagnosticado com hepatite. Os brasileiros dominaram a cozinha, conta Elisabeth Vargas, que fez parte de um grupo que cuidava do café da manhã.

Às vezes tínhamos dez ovos e vinte pães para seiscentas pessoas. Fazíamos ovo mexido com um pingo de ovo em cada fatia de pão. Mas éramos imbatíveis na sedução: os uruguaios tinham um toca-fitas e nós tínhamos uma fita da Gal Costa (‘índia, tua pele morena’). Fazíamos o maior sucesso com o café da manhã com música. Morríamos de fome, mas nos divertíamos.

Gabeira tem péssimas lembranças do pão feito pelos Tupamaros — de tão duro, chegou a quebrar um dente ao comê-lo. Já para Elisabeth, os “tupas” eram geniais. Eles moravam espremidos no porão, sem reclamar. Um dia, ficou claro o porquê. Havia uma adega cheia de comidas e bebidas finas, mas guardada por uma porta de ferro. Pois os “tupas” desparafusavam a porta, pegavam o que queriam e depois a colocavam no lugar. Há quem tenha visto o grupo fazendo churrasco no jardim de madrugada, para não chamar atenção. A farra discreta acabou quando outros brasileiros descobriram a adega, derrubaram a porta e “sem habilidade nem sutileza”, segundo Elisabeth Vargas, beberam e comeram tudo o que viram pela frente. “Depois de mais de um mês na embaixada, o sexo corria solto”, conta Elisabeth.

Havia uma uruguaia que dormia no nosso salão. Toda noite ela vestia uma camisola de voil rosa-choque, e seu colchonete era visitado por vários compañeros. Passamos a chamá-la de oea [Organização dos Estados Americanos].

Liszt Vieira descreve em seu livro que, em determinado momento, foi descoberto o acesso a uma salinha secreta atrás de um móvel. Resolveram fazer da alcova diplomática um espaço de visita íntima, com escala coordenada por um casal brasileiro.

Tensão

A comunicação era difícil, tanto de dentro para fora da embaixada como no sentido oposto. Relatos de chilenos no filme Asilo 1973 lembram de um cantor lírico amador que ia à varanda fazer inofensivos exercícios de voz, até perceberem que em meio ao solfejo ele mandava recados para quem estava do lado de fora. Havia também os responsáveis por descobrir o que andava acontecendo lá fora. Pelo rádio se soube, por exemplo, da morte do músico Víctor Jara — um tempo depois de seu assassinato, no dia 16 de setembro, no estádio que mais tarde ganharia seu nome — e do poeta Pablo Neruda, no dia 23. Apesar da censura, a turma da embaixada logo soube da comoção que tomou o enterro, transformado na primeira manifestação contra a recém-instituída ditadura de Pinochet.

A tensão era grande entre os refugiados. No início de uma noite, sentiram um tremor. “Fiquei olhando para o candelabro no teto, que mexia de um lado para o outro. A gente pensou que a embaixada estava sendo atacada, e que íamos ter que nos preparar para algo. Por sorte, durou pouco tempo”, se lembra Tabajara Ruas.

De cara, o que chamou atenção de Apolo Heringer foi a reação dos chilenos presentes: “Eles têm um reflexo instantâneo a terremotos, e logo pularam a janela para o quintal, enquanto a gente ainda tentava entender o que estava acontecendo”. Integrante do grupo de médicos entre os refugiados, Apolo estava de plantão quando aconteceu o incidente. “Chegou uma grávida bem barriguda para falar comigo, desesperada, e eu, para consolá-la, disse que o terremoto tinha sido no Peru, com reflexo no Chile. Aí ela apavorou de vez, porque era peruana, com família lá.”

‘Golpe é uma das palavras mais antigas da minha vida. Nunca tive que perguntar o seu significado’

Para passar o tempo, havia quem jogasse xadrez ou participasse de reuniões políticas. Um baralho foi improvisado com um pedaço de jornal. Livro era objeto raro, e quando aparecia era compartilhado. Em um artigo publicado no jornal El País em 2016, para lembrar os quatrocentos anos da morte de Cervantes, Ariel Dorfman conta como conseguiu fazer sessões de leitura de Dom Quixote com um grupo de umas trinta pessoas, de várias nacionalidades, em meados de outubro.

Para conseguir o livro, o jeito foi pedir ao “desagradável e fascista funcionário da embaixada, de cujo nome definitivamente não quero me lembrar”. O interlocutor chegou a fazer troça, dizendo que os revolucionários reunidos ali “arremetieron contra molinos de viento” (atacaram moinhos de vento). Mas terminou por arranjar um exemplar. Nas palavras de Dorfman:

Nós, que lemos Dom Quixote em 1973, numa embaixada da qual não podíamos sair, rodeados de soldados prontos a transportar-nos para estádios, porões e cemitérios, respondemos visceralmente àquela obra desenfreada concebida em circunstâncias não inteiramente diferentes das que sofremos.

Insurgência infantil

A falta de notícias (ou de vontade) por parte dos diplomatas levou alguns refugiados a uma estratégia inusitada: provocar uma insurgência das crianças. “Orientamos as crianças a quebrarem os lustres”, conta Sandra. Elisabeth Vargas registrou o motim: “Fizeram um estrago total, entupiram as privadas, destruíram os jardins, um inferno. Segundo Almir, o provocador dessa insurgência infantil, era para sensibilizar o governo argentino que havia nos deixado ao deus-dará”.

Na lembrança de Flavia Castro, aquele momento foi impactante porque permitiu, pela primeira vez, que os pequenos acessassem o jardim da frente, até então resguardado. “Foi um momento mágico, a grama ali estava verdinha, enquanto a dos fundos, onde ficávamos mais, estava totalmente ressecada.” A partir do episódio, a população da embaixada constatou que precisava se organizar mais e passou a se dividir por país, cada um com um porta-voz para intermediar as negociações com a Argentina. Gabeira foi o representante brasileiro.

Os outros

Mas afinal, quem eram os funcionários argentinos? Assim como Dorfman, os brasileiros parecem não ter se preocupado em registrar seus nomes. Flavia Castro lembra de um mordomo de figura cinematográfica, “que era a cara do Peter Lorre” — e inspirou um personagem de seu filme. Liszt conta que o embaixador era “um velho ausente”, e que no começo sua mulher, norte-americana, ia visitá-los uma vez por semana, sempre parecendo estar embriagada. Segundo ele, o cônsul peronista fora o responsável por deixar o portão aberto. Quando descobriram que havia gente de outras nacionalidades que não chilenos e argentinos, ele foi afastado.

Havia também o encarregado de negócios Albino Gómez. No filme Asilo 1973, ele conta que chegou a subornar guardas para poder passar com encomendas sem ser importunado. Mas o mais celebrado foi Félix Córdova. No filme feito para a exposição Memórias Encontradas, em cartaz em julho em Montevidéu, o uruguaio Alberto Iriarte o define como “um homem muito humano e inteligente”, a quem todos eram gratos.

Livro era raro, e quando aparecia era compartilhado. ‘Dom Quixote’ era lido por umas trinta pessoas

Na época terceiro-secretário, Córdova contou ao refugiado peruano Jorge Reyes num vídeo curto, Félix Córdova Moyano: embajador de la libertad, que chegou a enfrentar a mira dos militares para garantir a entrada de refugiados no palacete: 

Quando um casal forçou a entrada e caiu no jardim, carabineros apontando a metralhadora entraram em território argentino. Saí correndo, disse ao carabinero que ele não poderia entrar. Houve um momento de tensão, em que apontaram as armas para mim também, e finalmente se retiraram.

Até o final de 1973, boa parte dos brasileiros já tinha sido levada para solo argentino e dali para outros destinos, como Suécia, Dinamarca, França e Suíça, para onde foi Elisabeth Vargas, depois de se reencontrar com seu marido Jorge Mattoso na Argentina. Os dois acabariam se exilando na França e voltaram em 1979.

Mas o ano de 1974 chegaria com a embaixada em Santiago ainda cheia de gente. No dia 3 de janeiro, houve espaço até para um assassinato. O chileno Sergio Molina, que estava lá havia dois meses, foi pego numa arapuca. Chamado para ajudar um suposto refugiado a pular o muro dos fundos, acabou levando um tiro fatal. A ação resultou num protesto formal do governo Perón, por atentado aos princípios de direito de asilo.

Houve situações dramáticas também em outras embaixadas. A de Cuba chegou a ficar sob ataque, e foi salva pelo embaixador sueco Harald Edelstam, que entrou na marra e hasteou a bandeira da Suécia no local para cessar os tiros. Edelstam, aliás, é lembrado como um herói por vários exilados. Ele chegou a resgatar mais de cinquenta uruguaios que estavam no corredor da morte no Estádio Nacional. Faria mais se não tivesse sido obrigado a deixar o Chile em dezembro de 1973, depois de ser considerado persona non grata por Pinochet.

A viúva e as filhas de Allende chegaram a ficar abrigadas na embaixada do México, bem como centenas de outros refugiados. Logo nos primeiros dias, dois corpos de rapazes alvejados ao tentar entrar foram deixados em frente ao portão, para intimidar. O embaixador Gonzalo Martínez Corbalá transportou gente na mala do próprio carro, e chegou a enrolar um chileno em uma bandeira do México para protegê-lo na entrada da casa. “Nunca negamos asilo a ninguém. Preferi me equivocar e aprovar a entrada de alguém que por ventura exagerava, a deixá-los na interpérie”, disse ele ao jornal El País em 2013.

A embaixada do Panamá tem trajetória inusitada. Originalmente localizada em um apartamento, ela chegou a abrigar mais de trezentas pessoas, dentre os quais pouco mais de cem brasileiros, como descreve o jornalista Roberto Simon no livro O Brasil contra a democracia: a ditadura, o golpe no Chile e a Guerra Fria na América do Sul. A situação se tornou inviável, e a solução que se apresentou veio de um de seus refugiados brasileiros, o economista Theotônio dos Santos. Ele cedeu sua casa, que por algumas semanas valeu como território panamenho. O traslado do prédio para o casarão na rua José Domingo Cañas 1367 foi realizado graças à autorização de uma comissão de médicos do Exército, que foi ao apartamento constatar “o estado de insalubridade e possível foco infeccioso” por conta da lotação.

A maior parte do grupo, formado por gente como os futuros políticos José Anibal e Marco Aurélio Garcia, os sociólogos Betinho e Emir Sader, o historiador Daniel Aarão Reis e Carlos Afonso, um dos pioneiros da internet no Brasil, deixou o Chile ainda em 1973. No ano seguinte, o lugar que salvou tantas vidas foi apossado pela Junta Militar e se tornou um dos mais duros centros de tortura de Santiago, o Cuartel Ollagüe. Hoje, abriga a Casa Memoria José Domingo Cañas, que recupera toda essa história.


Personagens de As vitrines, filme de Flávia Castro, inspirados em figuras do tempo que passou na embaixada da Argentina em Santiago

A embaixada da Itália — que recebeu brasileiros como José Serra e foi tema do documentário Santiago, Itália, de Nanni Moretti — se liga ao Cuartel Ollagüe num episódio mórbido. No dia 4 de novembro de 1974, o cadáver da estudante chilena e militante do Movimiento de Izquierda Revolucionaria (mir) Lumi Videla foi jogado muro adentro da casa onde funcionava a missão diplomática europeia. A intenção, aparentemente, era apavorar os membros do mir refugiados ali. Presa em 21 de setembro, ela havia sido interrogada e torturada no quartel. O caso repercutiu internacionalmente, e a Itália e outros países suspenderam relações com o Chile.

Meio século depois do golpe, o Chile de hoje é liderado pelo esquerdista Gabriel Boric, mas mantém o fantasma do Pinochet em alta. Pesquisa da Mori Consultoria revelou que em 2023 apenas 42% dos chilenos consideram que o ditador acabou com a democracia no país.

Neste mês de setembro, um grupo de ex-exilados brasileiros que se refugiou em diferentes embaixadas vai ao país. Mobilizados, eles criaram um manifesto e querem colocar uma placa na embaixada do Brasil em homenagem aos compatriotas mortos lá. Entre erros e acertos, os militantes, em sua maioria na casa dos oitenta anos, têm orgulho de suas trajetórias. “Não podemos negar nossa história. Usamos estratégias incorretas, fomos precipitados, tivemos muita dor e muita perda. Acho que a gente estava equivocado nas táticas, mas a consciência política não muda”, diz a socióloga e ex-guerrilheira Sônia Lafoz.

Nota do editor
O depoimento inédito de Elisabeth Vargas mencionado ao longo dese texto está disponível no site quatrocincoum.com.br.

Quem escreveu esse texto

Helena Aragão

É jornalista e mestre em História, Política e Bens Culturais pela FGV.

Matéria publicada na edição impressa #73 em agosto de 2023.