Memórias do Chile,

Aqueles primeiros verões sem o ditador

Romance quase ingênuo sobre viver sob a sombra de Pinochet surfou na buena onda do fim do regime

01set2023 | Edição #73

Naquele fim de verão de 1990, enquanto o general Augusto Pinochet entregava a presidência do Chile depois de duas décadas no poder, a banda californiana Faith No More vivia um estranho processo de ascensão. Seu álbum de estreia com Mike Patton nos vocais, The Real Thing, não tinha nada a ver com os grupos de hard rock de cabeludos preponderantes na década anterior, como Def Leppard e Guns N’ Roses, e nem mesmo com o pop de sintetizador das grandes estrelas da mtv. O som do Faith No More misturava violentas camadas de metal e funk com o fraseado particular de Patton, um freak que deixava intrigados até mesmo os outros freaks ao redor. A banda ainda não era a revolução do grunge, que moldaria de vez a estética popular dos anos seguintes. Estava mais para o ponto de exclamação, seguido por um de interrogação, típico das viradas entre décadas. Mas quem sintonizava as fms naquele fim de verão em que o ditador foi embora já escutava o segundo single de The Real Thing, “Falling to Pieces”. Literalmente, algo estava caindo aos pedaços. E não era sem tempo.

Por alguma razão, o sucesso do Faith No More parecia ser ainda maior na América do Sul, com muitos dos países vivendo um processo fresco de redemocratização. A impressão era de que a postura punk de Mike Patton entrosava bem com a juventude latino-americana da época, que queria entrar na nova década de costas para um recente passado opressor e nacionalista. O popular apresentador de rádio Iván Valenzuela chegou a reclamar, numa coluna do jornal chileno El Mercurio, que o fnm seria o único capaz de resgatar o festival Viña del Mar (o mais tradicional do país) da sua breguice costumeira. Assim, no verão de 1991, aquele primeiro já sem o ditador, os norte-americanos se apresentaram no balneário. O show foi um desastre, entre aspas. Metade da plateia saiu em disparada logo nas primeiras músicas (a apresentação inteira está disponível no YouTube), mas a juventude que assistiu pela tv adorou as maluquices do grupo e sentiu que ali alguma coisa se partira de vez, como na canção que tocava sem parar nas rádios. E, entre os que se divertiram com a temporada chilena do fnm, estava o jornalista Alberto Fuguet, então um ascendente escritor local.

Ter ‘Mala onda’ debaixo do braço era sinal de rebeldia, de ter feito um acordo com o presente

Fuguet chegou a ficar amigo de Patton e encorajou algumas das posturas, digamos, “controversas” do cantor no palco do Viña del Mar. Sugeriu que ele se fantasiasse como um jovem estudante chileno, dedicasse uma das músicas à cantora Myriam Hernández (conhecida então como a “voz romântica da América”) e desse um beijinho na bochecha do apresentador Antonio Vodanovic. Gestos que hoje beiram a inocência, mas que causaram comoção em um país que viveu duas décadas sob uma das mais violentas ditaduras do século 20. E que, durante esse tempo, raramente havia recebido shows de estrelas internacionais do rock. A crítica chilena, claro, detestou o FNM. O tradicional crítico Ítalo Passalacqua não mediu palavras em sua resenha no El Mercurio e chamou a apresentação de “decadente maratona para masoquistas”. Para os padrões de Fuguet, o comentário de Passalacqua era o melhor termômetro de sucesso. Mal sabia o escritor que teria de enfrentar crítica parecida no verão seguinte.

Ao longo de 1991, ele escreveu aquele que seria seu romance mais famoso, Mala onda, ou Baixo astral, na tradução brasileira de Enrique Boero Baby. A ideia era produzir um livro que rompesse com os tópicos típicos do que se esperava de uma literatura escrita por um autor latino-americano. Nada de histórias de ditadores ou pessoas voando, como no realismo mágico que fez a fama e fortuna da conterrânea famosa Isabel Allende. Queria ser urbano, pop, globalizado. Ambições literárias hoje ingênuas, mas que pareciam fazer sentido naquele momento em que um artístico (e político) desejo parricida soava como algo mais do que justificado. E parricida foi, na época, a forma encontrada pelo Nobel peruano Mario Vargas Llosa para descrever o romance.

Mala onda era tudo isso, e ainda tinha algumas camadas de sexo e uso de drogas aqui e ali. Foi publicado primeiro na Argentina, em dezembro de 1991, com a epígrafe retirada de um trecho da letra de “Falling to Pieces”. Em fevereiro de 1992, é lançado no Chile, e outro personagem de verão entra em cena, o padre José Miguel Ibáñez Langlois, que, sob o pseudônimo Ignacio Valente, tornou-se o grande crítico do Chile, sobretudo durante a ditadura. Uma espécie de padre nosso literário, cujas escolhas casavam bem com o gosto do regime.

Padre-crítico

De modo geral, no primeiro momento, a crítica chilena detestou Mala onda. Mas a crítica de Valente era, digamos, mercadologicamente exemplar em seu repúdio. Num artigo chamado “Livros de verão”, publicado no El Mercurio, naquele começo de 1992, ele chama o romance de lixo e confessa que não teve nem estômago para terminar a leitura. Como acontece algumas vezes nesses casos, a aversão do crítico foi tamanha que o tiro saiu pela culatra: o romance se tornou sucesso de vendas, sobretudo em meio à parcela jovem de leitores. Ter Mala onda debaixo do braço, então, era sinal de rebeldia, de que você havia feito um acordo com o presente. A repercussão da miopia de Valente diante da nova produção literária chilena foi tamanha, que ele próprio acabou se recolhendo aos poucos depois da resenha.

Atualmente, é difícil encontrar notícias sobre Valente, agora com 87 anos. Quando conversei com Fuguet, há alguns anos, perguntei sobre o padre-crítico. Ele me falou que a nova geração nem se lembrava mais dele e que não tinha a menor ideia do seu paradeiro. Em meados de julho passado, troquei e-mails com o crítico literário chileno Raúl Rodríguez Freire, professor da puc de Valparaíso, e ele me falou quase a mesma coisa, mas me enviou a última notícia sobre Valente, publicada na imprensa chilena.

Era uma página inteira do jornal El Mercurio, que tanto nos acompanha ao longo deste texto, sobre o livro, reunindo os escritos para a imprensa do padre-crítico, datada de setembro de 2020. O título da reunião de escritos é divertidíssimo pelo caráter didático: No confundir fantástico con maravilloso. Melhor ainda é a ilustração da página: Valente aparece sentado numa poltrona vermelha e cercado por algo como um monstro marinho e pelo coelho de Alice no país das maravilhas. Seu olhar é compassivo e tem algo de etéreo. Fico me perguntando se ele estaria sendo retratado ali como uma espécie de rainha louca de copas.

Os parênteses que abro aqui sobre Valente têm importância não apenas pela crítica arrasadora de Mala onda. Ele foi uma espécie de musa inspiradora de uma das obras mais irônicas, e assustadoras, sobre a ditadura chilena, Noturno do Chile (2000), novela de Roberto Bolaño que retrata o momento do golpe contra Salvador Allende e os primeiros anos do governo de Pinochet. O narrador
é Sebastián Urrutia Lacroix, padre e crítico literário importantíssimo. E importantíssimo ao ponto de dar aulas secretas sobre marxismo para o general, que estava louco para entender a cabeça dos inimigos comunistas. Usando o nome verdadeiro, Valente chegou a publicar um catatau de mais de quatrocentas páginas, chamado El marxismo: visión crítica, em que reclama do caráter francamente “ateu” do humanismo de Marx.

Vida em parafuso

Baixo astral foi publicado no Brasil em 2001, pela Record, e hoje só é encontrado em sebos. Apenas mais um livro de Alberto Fuguet foi lançado por uma editora brasileira, Os filmes de minha vida, em 2005, pela Agir. Mas vale a pena ir atrás do romance, para além da curiosidade por uma obra que causou tamanho asco em Ignacio Valente e na imprensa chilena naqueles primeiros anos pós-Pinochet? A resposta é sim, sobretudo pelo carisma do protagonista, o adolescente de classe média alta Matías Vicuña, espécie de estereótipo de quem era jovem demais, privilegiado demais, para entender direito o que estava acontecendo ao redor, ainda que soubesse que alguma coisa não ia muito bem. Mas exatamente o quê?

O livro começa com Vicuña chapado e estirado na praia de Ipanema, com enormes óculos Ray-Ban, conjecturando sobre seu tédio. Está há onze dias no Brasil, passando férias com a turma do colégio, onde consumiu drogas sem parar. Sente-se incomodado por ter de voltar do que ele chama de uma “grande viagem” para um Chile, nas palavras dele, completamente sem graça, com pessoas insossas e sem “a alegria contagiante dos brasileiros”. Estamos aqui em setembro de 1980, quando é aprovada a nova Constituição chilena, a partir de um plebiscito, que então restituiu o poder de Pinochet. A mesma carta magna que foi rechaçada pela esmagadora maioria do país em votação popular realizada ano passado.

Vicuña volta para casa e, sem querer ter notícias do general, da nova Constituição ou de coisa alguma que cheirasse à política, passa o tempo se chapando e ouvindo música pop norte-americana. Sua vida, no entanto, entra em parafuso quando descobre O apanhador no campo de centeio, paradigma de romance de formação do século 20, de J. D. Salinger. O livro que inaugurou uma nova forma de retratar a vida e o modo de falar da juventude dos Estados Unidos, num careta mundo pós-Guerra, a partir das desventuras do personagem Holden Caulfield.

Pinochet está em cada página do livro, ainda que seu nome mal apareça. É protagonista por subtração

“Ontem à noite, eu conheci Holden Caulfield. Foi uma coisa de pele, completamente avassaladora. Eu não conseguia acreditar. Já não estava mais tão sozinho, me sentia menos mal. Tinha encontrado um amigo. Meu melhor amigo. Tinha encontrado um cara igual a mim”, descreve Vicuña, que continua: “Foi por acaso que encontrei Holden Caulfield. Foi como nos filmes. Justamente quando a gente acha que não tem mais jeito, que está tudo perdido, que nunca, nem por acaso, vai sair do buraco”.

Baixo astral é um divertido, e até ingênuo, romance sobre o poder da leitura. E é também um romance sobre viver sob a sombra de Pinochet, mas não do ponto de vista das vítimas do regime, e sim da classe social que estava se dando bem com ele. Pinochet está em cada página do livro, ainda que seu nome mal apareça. É protagonista por subtração. O dinossauro parece mesmo que nunca vai embora, como naquele microconto de Augusto Monterroso.

Na edição comemorativa de trinta anos de Mala onda, lançada no Chile em 2021, o blurb do livro recupera um trecho da resenha arrasadora de Ignacio Valente. A publicidade negativa continua sendo a melhor propaganda. Ao longo da carreira, Fuguet escreveria livros bem melhores do que Mala onda, especialmente Missing, uma novela de investigação em que descreve a busca real pelo paradeiro do seu tio, um ex-junkie e ex-hippie tratado pela família como um subversivo e desaparecido político (o que, no fundo, não deixava de ser verdade); ou mesmo o elogiado Sudor, que o autor descreveu como um “romance sobre o amor nos tempos do Grindr”. Sim, Fuguet escreveu livros bem melhores do que Mala onda. Mas aqueles primeiros verões sem Pinochet foram inesquecíveis.

Quem escreveu esse texto

Schneider Carpeggiani

É editor, jornalista, doutor em teoria literária e curador.

Matéria publicada na edição impressa #73 em agosto de 2023.