Coluna

Paulo Roberto Pires

Crítica cultural

Allons muchachos

Para brasileiros ainda não lobotomizados e bolivianos humilhados, imagens do Chile são lembretes de que revolta pode ser sinônimo de sobrevivência

14nov2019

Um milhão de chilenos não derrubaram o governo, mas produziram nas ruas uma imagem de pura potência — o que não é pouco. O flagrante de manifestantes escalando um monumento do centro de Santiago correu o mundo por seu simbolismo evidente: entre bandeiras do país e faixas brancas e vermelhas, o quadro é dominado por um homem de braços abertos que, acima da multidão, de pé sobre a estátua equestre do general Baquedano, exibe outra bandeira, a dos Mapuche — povo indígena que lutou por mais de trezentos anos para defender seus territórios em partes do Chile e da Argentina.  

O instante decisivo no protesto de 25 de outubro não foi capturado por um profissional à caça de imagens, desculpem o termo, “icônicas”. Susana Hidalgo, uma atriz de 33 anos, participava da manifestação quando, logo depois de um helicóptero passar sobre a multidão, fez o registro com a câmera do celular. Em entrevista à BBC Brasil, ela diz não ver na cena “ódio ou divisão”, mas “uma revolução e o sonho de um país livre e unido”.  


Manifestantes no centro de Santiago [Susana Hidalgo]

De imediato, a imagem se impõe por despertar a solidariedade com aqueles que, mesmo debaixo de tiro, porrada e bomba, têm o brio de se sublevar por uma vida melhor. Para os brasileiros ainda não lobotomizados, para os bolivianos humilhados, é um lembrete de que desmandos acumulados podem ser fermento de inconformismo – e a passividade, véspera da revolta. É ainda um recado duro do que sobrou dos chilenos depois de submetidos ao mesmo modelo econômico que hoje nos enfiam goela abaixo. 

Chama a atenção ainda, no instantâneo de Hidalgo, os ecos de A liberdade conduzindo o povo, a tela de Eugène Delacroix que se firmaria como emblema dos ideais democráticos inspirados na história francesa. As circunstâncias que cercam um e outra são evidentemente incomparáveis. Na imagem produzida há 189 anos, a Marianne, seios nus, bandeira da França numa mão, baioneta na outra, preside e comanda a cena como o faz, em 2019, o anônimo que desfolha o pavilhão mapuche. Aos pés da mulher que simboliza a République, nos escombros de uma barricada, soldados mortos e populares armados, conflagração e comemoração — uma alta voltagem emocional e política que também percorre a multidão que parece escalar o monumento em Santiago. Separadas pela história e pela geografia, as cenas se dão contra um céu de cores dramáticas e expressivas. 

Susana Hidalgo tinha, então, tantas pretensões quanto qualquer um de nós quando saca sua câmera. Delacroix procurou fixar na tela fragmentos do que viu ao caminhar pela Paris dos “Três Gloriosos”, como ficaram conhecidos os dias de revolta que, em julho de 1830, resultaram na deposição de Carlos X em favor de Luís Felipe I. Quando o quadro foi exposto no salão de 1831, fez-se o desconforto: a alegoria, com referência óbvia à Revolução Francesa, subvertia a assepsia própria deste tipo de representação ao introduzir elementos de realismo indesejado — pelo menos do ponto de vista de um levante conservador. 

“O quadro de Delacroix é ao mesmo tempo abstrato e preciso, quase convencional”, escreve o historiador da arte T. J. Clark, chamando a atenção para detalhes realistas da imagem, como as torres da Notre Dame que aparecem no canto direito. “A tela combina mito e história com peculiar convicção, os dispõem literalmente juntos, lado a lado, sem sobressaltos. O quadro é uma alegoria, mas uma alegoria localizada num lugar específico, num dia específico. […] Naquele momento, a Liberdade surge e conduz o movimento. Mas ela é a Liberdade dentro de um contexto: ela é mito, mas um mito temperado e circunscrito pela sua localização.”  

Por décadas seguintes ao salão de 1831, os franceses foram privados de apreciar A Liberdade conduzindo o povo, hoje exposta em lugar de honra no mesmo Louvre que a escondeu em seus porões. O quadro de Delacroix incomodou o poder como a imagem chilena jogou gasolina na fogueira de boçalidade em que crepitamos. Talvez porque o acaso de um celular tenha dado um curto-circuito em Delacroix: a imagem que o povo chileno produziu e uma manifestante registrou é obviamente realista, mas exala força simbólica e mítica impressionantes. Como em outros momentos da história, nos lembra que revolta é, muitas vezes, sobrevivência.

Quem escreveu esse texto

Paulo Roberto Pires

É editor da revista Serrote. Organizou a obra de Torquato Neto nos dois volumes da Torquatália (Rocco, 2004).