Literatura,
Onde vive o horror
Escritoras latinas dão fôlego a movimento literário sob e sobre a violência constante no continente
30jan2023 | Edição #66A decisão de uma professora de língua e literatura de sequestrar a própria aluna é tema de Mandíbula (Autêntica), da equatoriana Mónica Ojeda. Logo no início, o romance, que se desdobra na cidade de Guayaquil, descreve os apuros da jovem que desperta em cárcere. Com o passar do tempo, o cenário nebuloso revela a impossibilidade de manter vítima e malfeitora em lados opostos, já que são personagens obtusas e carregadas de complexidade. Atravessado por questões psicológicas, o enredo escancara, a partir de uma narrativa polifônica, a crueldade que entremeia as relações íntimas. A pulsão de submeter o outro aos próprios desejos acomete mães, filhas, amigas e professoras.
Ojeda é exemplo de um movimento que, embora não seja inédito, ganhou novo fôlego na América Latina nos últimos anos. Sob diferentes abordagens, escritoras de língua espanhola têm se dedicado a construir uma ficção que partilha o interesse por situações hostis. Essa curiosidade ganha espaço no Brasil por meio de traduções e propõe reflexões sobre a inexistência de um lugar seguro frente à sistematização de violações.
“Não acho que exista uma obrigação de falar sobre isso agora, mas quando se vive em um lugar em que a violência é o pão de cada dia, ou os seus afetos estão em uma zona de perigo, fica difícil evitar que isso não se reflita em uma obra”, diz Ojeda à Quatro Cinco Um. Ela destaca ainda o papel da literatura no processo de reparação, crucial no enfrentamento de traumas. “Uma vez vítima, você pode perder a voz e a capacidade de articular um relato sobre o que aconteceu. Os atos de ler e escrever, em contrapartida, auxiliam na restituição emocional ao permitir que você percorra locais obscuros, onde a experiência psíquica finca raízes.”
Esse exercício subjetivo de narrar o hediondo conecta Ojeda a outros nomes de sua geração, como as colombianas Pilar Quintana (A cachorra e Os abismos, lançados em português pela Intrínseca) e Vanessa Londoño (Cerco animal, lançado pela Peabiru) e a mexicana Fernanda Melchor (Temporada de furacões e Páradais, lançados pela Mundaréu). Nas histórias de Melchor, por exemplo, é possível observar a barbárie sob diferentes ângulos, desde a aparição de um cadáver putrefato na periferia até a sordidez da misoginia oculta pelas elites no litoral.
Mais Lidas
A Argentina também vem atuando como uma fértil exportadora de publicações do gênero. Os livros As coisas que perdemos no fogo e Nossa parte de noite (Intrínseca) tornaram a portenha Mariana Enríquez bastante conhecida por aqui. Com frequência, ela ambienta seus contos e romances na cidade de Buenos Aires, à qual atribui um estado permanente de medo por meio de personagens como crianças assassinas, membros de seitas secretas e até jovens que veem na decisão de atear fogo aos próprios corpos a salvação para abusos iminentes.
“Eu me pergunto se as mulheres não estariam mais próximas do que os homens de alguns tipos de violência, e se isso não influencia diretamente o que ocorre na nossa literatura”, diz Samanta Schweblin, autora de Pássaros na boca e Sete casas vazias (Fósforo), vencedor do National Book Award em 2022. “Independentemente do que fizermos, não é tão fácil se desvencilhar do contexto em que está imersa a América Latina, muito menos pedir que alguém abandone uma carga pessoal de emoções no momento em que faz a leitura”, diz. “Se um texto, mesmo que menos violento, é lido em um contexto em que o horror é experienciado de forma contínua, o leitor pode refleti-lo. Uma obra não reflete apenas seu autor, mas também quem a lê.”
Violência institucionalizada
Esquivando-se de interpretações panfletárias ou mesmo românticas do tema, as escritoras concordam que a produção atual foi influenciada pelos anos em que países da região elegeram governos neoliberais. Em muitos casos, a violência foi institucionalizada. “As políticas adotadas nesse período excluem a maioria da população e agravam o problema, visto que os territórios mais pobres são também os que mais se deparam com a indiferença”, afirma a argentina Dolores Reyes, autora do romance Cometerra (Moinhos). “Falar sobre violência na América Latina nos leva a pensar que estamos em um território heterogêneo, mas o horror, especialmente quando motivado por razões políticas, impacta os corpos de todas nós desde a infância.”
‘Ler e escrever auxiliam na restituição emocional ao permitir que você percorra locais obscuros’, diz Ojeda
Sob a perspectiva de uma criança órfã, que adquire o poder de rastrear desaparecidos após comer porções da terra em que a vítima pisou, a história expõe a incapacidade do Estado de lidar com o crescente número de violações contra mulheres e a burocracia existente na luta por justiça. Para Reyes, que nasceu no auge da ditadura militar argentina (1976-83), encarar essas questões é fundamental para a construção de leitores ativos, capazes de estabelecer e preservar a memória histórica.
A boliviana Giovanna Rivero, que aborda situações-limite, barbárie e morte nos contos da coletânea Terra fresca da sua tumba (Incompleta/Jandaíra), tem visão similar. A escritora lembra que a América Latina criou seus próprios métodos de abordagem do horror cotidiano, dissociando-se com frequência de moldes clássicos impostos por produções de língua inglesa. “A figura do serial killer, por exemplo, foi menos frequente por aqui”, diz ela. “Me parece que o continente tem seu próprio conceito de produção em série quando se trata de violência, já que sobreviver na informalidade e no dia a dia podem ser coisas tão violentas e sequenciais quanto o fato de ser perseguido por alguém.”
Essa gama de ameaças faz-se evidente em seus contos, marcados por uma sensação de deslocamento e uma vasta ordem cultural, que expõe a diversidade de seu país de origem. Não raro, o leitor se depara com a presença de pessoas invisibilizadas, em sua maioria imigrantes latinos que partem rumo à América do Norte e tentam manter vivas suas identidades. “O grande monstro que gera monstros humanos é a economia, o que me leva a crer que é muito mais interessante observar a refletir essa instabilidade coletiva em termos literários”, diz Rivero. “Só a literatura pode nos conectar a valores transcendentais, entre os quais está a capacidade de se comover com a dor alheia.”
Matéria publicada na edição impressa #66 em dezembro de 2022.
Porque você leu Literatura
Listãozinho 2024
Uma seleção de 22 lançamentos infantojuvenis recebidos pela redação da Quatro Cinco Um com obras que abordam temas como ciência, diversidade, ecologia, fantasia, luto e sentimentos
OUTUBRO, 2024