Literatura brasileira,
O Vale Encantado do Rio Pinheiros
Romance sobre geração que desembocou em Bolsonaro faz inventário de assombrações da classe média
16out2023 | Edição #75Os paulistanos de classe média alta nascidos a partir dos anos 80 deram um nome para a região da Zona Oeste que concentra colégios e clubes caros, bares e restaurantes da moda: Vale Encantado do Rio Pinheiros. Como convém aos melhores apelidos, o significado é preciso. Seja pelo alheamento à realidade brasileira, seja pela falta de propósito na vida de muitos, é como se esses jovens leite tipo A vivessem num estado de encantamento, suspensos no tempo e nas tardes depois das aulas, fumando maconha nos canteiros travestidos de praças do Alto de Pinheiros.
Talvez Tiago Ferro não conheça esse apelido do bairro porque ele escreve O seu terrível abraço desde uma geração anterior. Mas é justamente essa janela que ele abre no livro, por meio de um narrador próximo dos cinquenta anos, que reluta a se tratar de uma doença terminal enquanto revisita um passado sem projetos nem conquistas.
Idas e vindas
O livro opera quase como um caderno de anotações, mesclando diário, pensatas, memórias, lembranças de sonhos, transcrições, microrresenhas, listas e fabulações a partir da observação cotidiana. Numa organização não linear e fragmentada, acompanhamos esse narrador adulto adoecendo em meio às suas reminiscências, com personagens que se transmutam e chaves narrativas que se alternam para ilustrar a porralouquice melancólica, a apatia cheia de remorso e uma consciência de classe autodestrutiva.
Entre idas e vindas e registros tão díspares entre si, a ruína do protagonista vai tomando forma. Notas sobre um isolamento agonizante na praia durante a pandemia, relatos da vida em condomínio em Pinheiros e experimentações para descrever noites de esbórnia adolescente se sucedem e se confundem numa ordem pouco clara mas marcada pelo ritmo daquilo que o autor chamou, em entrevistas, de implosão do homem branco universal, um tipo que não serviria mais para projetar ideias nem aspirações. Um tipo que, trazendo para o caso concreto brasileiro e do universo explorado pelo autor, se traduz no paulistano de classe média que, por omissão ou convicção, contribuiu para o triunfo bolsonarista.
Daí resultam os aspectos mais políticos de O seu terrível abraço. Lançado numa data próxima à efeméride dos dez anos dos protestos de junho de 2013, o livro foi divulgado e recebido como uma obra literária política, como se houvesse um duto que ligasse diretamente as subjetividades do protagonista e de seu entorno ao turbilhão que nos levou até Bolsonaro. Essa associação aparece diretamente, por exemplo, quando Ferro ilustra o modo como seu personagem principal tenta se aproximar das manifestações, distante e desajeitado, querendo tomar pé do que ebulia. Ou em descrições, que escorregam na caricatura, do médico fascista com quem o protagonista se trata ou do casal reacionário que vai de carrão para as passeatas.
Quando o lirismo do estranhamento sobrepuja a certeza da raiva, o livro tem seus melhores momentos
De forma mais sutil, a chave política também se manifesta no caráter geracional da obra, que retrata os bem-nascidos que cursaram o ensino médio nos anos 90 e viraram o século na faculdade. Uma geração cuja parcela mais politizada foi descrita pelo dramaturgo Alexandre Dal Farra em artigo para a Folha de S.Paulo como jovens que “sentiam falta de ser contra a ditadura; de fazer realmente parte de algo”, tomados pela culpa por seus privilégios ao mesmo tempo em que os viviam “intensamente de maneira autodestrutiva e extrema”.
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O recorte do autor paulistano, no entanto, explora um grupo mais irresponsável, despolitizado e ignorante, que busca diversão por meio de caminhos erráticos e aventuras asseguradas por uma rede de proteção familiar — sem nem ingressar numa camada mais profunda de tentar encontrar algum sentido para a vida. Aproxima-se, assim, do filme O sonho não acabou, de 1982, no qual Sérgio Rezende representa uma juventude de Brasília já imersa num processo larvar de mudança política, sem participar dele.
Mas se o processo político que serve de pano de fundo para o filme é o da redemocratização, ou seja, se Rezende aponta para a construção de alguma coisa, de um porvir misterioso para aqueles jovens alienados, o caso de O seu terrível abraço é diferente. Os abusos dos personagens acontecem enquanto um grande acidente se desenha em câmera lenta, como se um caminhão sem o freio de mão puxado descesse um declive suave rumo a uma avenida movimentada.
Quando o protagonista se dá conta, o estrago está feito. Ele e o país caminham juntos rumo à destruição, mas é nos momentos em que essa relação simbiótica é escancarada que o livro perde força, às vezes dando solavancos numa leitura que goza de boas passagens como a elucubração sobre o hálito forte do avô (“em algum canto do corpo já morto ficou apodrecendo um pedaço de verdura escura cozida com alho e um naco de pão italiano”), a neurose com as condições de higiene da casa de uma parente pedicure (“imaginava a poeira da pele dos calcanhares lixados caindo sobre a comida”) ou o surrealismo para descrever as condições subumanas reservadas às empregadas domésticas das famílias de classe média.
É quando o lirismo do estranhamento sobrepuja a certeza da raiva que o livro de Ferro tem seus melhores momentos. Quando as dúvidas que surgem da investigação sobre o próprio passado oferecem mais que um inventário de assombrações da classe média, como a menina que se perdeu na viagem de ácido, os pitboys que lincham transeuntes, o garoto que passa uma temporada na prisão por vender droga para a turma. Quando encontra as palavras certas para descrever a corrente de eletricidade que atravessa um corpo adolescente louco pelos desdobramentos desconhecidos de uma noitada, o afeto pelos pais de quem não consegue se emancipar ou a atmosfera flutuante de uma noite alucinógena de moleques numa casa de praia. No afã da implosão, O seu terrível abraço acaba nos entregando pepitas sem peneirar.
Matéria publicada na edição impressa #75 em outubro de 2023.
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