Cinema,

O mal-estar persiste

Em "Bacurau", Kleber Mendonça Filho volta ao tema da luta pela terra com tempero tarantinesco e um melancólico senso de atualidade

21out2019 | Edição #28 nov.2019

Não é um cineasta fácil, Kleber Mendonça Filho. Estreou com uma série de curtas geniais. Entre eles, Recife frio (2009), uma provocação sobre o sonho dos pernambucanos de viver em um clima europeu. Bacurau é seu terceiro longa. O primeiro foi O som ao redor (2015) — o melhor, a meu ver. O mais sutil. E o mais radical. Os protagonistas são o vigia noturno de uma rua na Boa Viagem; um senhor muito rico e arrogante, proprietário de um apartamento duplex; e seu neto, dividido entre o conforto proporcionado pelo dinheiro da família e a má consciência de estudante progressista. Parece que nada está acontecendo, mas o filme é tenso. O mal-estar da namorada do neto em visita à fazenda da família começa a desequilibrar o marasmo; a cena do banho de cachoeira que se transforma (alegoricamente) em banho de sangue pode ser considerada uma referência explícita demais ao passado escravocrata da chamada “aristocracia rural” do Nordeste. Mas não se pode dizer que seja exagerada.

No final do filme, cuja tensão (o “som” ao redor de tudo) parece inexplicável, o vigia é chamado ao apartamento do patrão para esclarecer algum suposto descuido em sua função. O clima é pesado. O último comentário do vigia, entre dentes — “por causa de uma cerca…” —, revela a vendeta que se anuncia. A câmera deixa o ambiente. Ouve-se um tiro. Caem os créditos. Quem matou quem?

A chave para a compreensão desse desfecho está entre as fotos que desfilam rapidamente na abertura do filme. Uma delas é a famosa imagem de um grupo de camponeses magérrimos portando suas foices, na década de 1960. Foi uma grande manifestação de membros das Ligas Camponesas que se dirigiram ao Recife para reivindicar a reforma agrária, no governo de Miguel Arraes (este, progressista, exilou-se com a família na Argélia depois do golpe de 1964). Uma das maldades que os fazendeiros faziam contra os posseiros que plantavam na beira dos córregos era cortar as cercas que protegiam suas roças. O gado entrava e destruía a horta. O fazendeiro avançava a cerca e tomava a terra. Assim se faziam (e ainda se fazem) grandes fortunas de famílias que depois se tornam tradicionais.

Talvez a catarse dificulte a percepção de que o desfecho do filme é revelador do desencanto em que o Brasil se encontra

Depois veio Aquarius (2016), que se passa em um antigo edifício no bairro do Pina (em Boa Viagem). O tema da especulação imobiliária se explicita através da personagem “fora de moda” representada por Sônia Braga. Envelhecida e fiel a seus hábitos “meiaoito”, ela se recusa a sair do pequeno prédio em que mora desde jovem, apesar das mais diversas formas de pressão (algumas psicopáticas) dos representantes da construtora. Vale lembrar que, na Boa Viagem, alguns terrenos na faixa atrás da praia ficavam abaixo do nível do mar. Numa área pantanosa do Pina existia uma favela chamada “Brasília teimosa”; no governo Lula, o lamaçal foi aterrado e a favela substituída por um modesto conjunto habitacional chamado Brasília Formosa. 

Então, Kleber Mendonça fez Bacurau, em codireção com Juliano Dornelles. Premiado e aplaudido de pé no Festival de Cannes, onde venceu o Prêmio do Júri, foi aguardado com ansiedade por aqui. E quase ninguém entendeu. É um Tarantino brasileiro? É uma apelação à violência para enfim fazer grandes bilheterias? Se foi, deu certo. Mas discordo dessa crítica.

O tema de Bacurau é o mesmo dos outros dois filmes de Mendonça. A luta pela terra, rural ou urbana. E pelas riquezas da terra. Interesses do capital tentando se sobrepor a vidinhas modestas. A vila de Bacurau — que “não está no mapa” — representa o abandono do interior do Brasil e uma espécie de amostragem alegórica de tipos que gostaríamos de ver em todos os lugares: o professor dedicado, a médica que trabalha a sério em condições precárias (Sônia Braga), o padre compreensivo. Do outro lado, há os “malvados”. Muito atuais, por sinal, em se tratando (ainda!) da disputa pela terra. Há uma gangue mortífera que quer se apossar das minas de Bacurau; pessoas começam a desaparecer; seus cadáveres são depois desovados em algum lugar da cidade…

Beco sem saída

A solução final é catártica, pois “do lado do bem” na perspectiva do espectador. Justifica os aplausos. Mas talvez a catarse dificulte a percepção de que o desfecho do filme é também revelador do desencanto, do beco sem saída em que o Brasil se encontra. Para derrotarem os maus, representantes de interesses estrangeiros, os moradores de Bacurau apelam para a gangue dos traficantes chefiados pelo cangaceiro andrógino Lunga (Silvero Pereira). O filme termina em matança tarantinesca, que resulta na vitória do bem (os habitantes de Bacurau) contra o mal (os estrangeiros). Ou talvez não. Talvez a força de Bacurau não resida no conforto imaginário que nos restitui ao final, assim que descem os créditos. Depois disso, o mal-estar persiste.

Talvez Kleber Mendonça tenha conseguido fazer (como Glauber Rocha) uma grande alegoria do Brasil. Pois bem: a alegoria, que os brasileiros se habituaram a associar com o Carnaval, situa-se no mesmo campo da melancolia. Walter Benjamin, em sua tese de doutoramento, desenvolve essa relação. A explicação é longa, mas vale esclarecer que a alegoria não responde ao imaginário, e sim ao campo simbólico — daí a aparente “ausência de vida” em suas imagens visualmente ricas, mas estáticas. Anos depois, em sua série de crônicas sobre Paris (“Paris, a capital do século 19”), ele inclui um capítulo sobre Baudelaire. Encontramos em “Le cygne” (O cisne) a seguinte passagem, em tradução livre: Paris muda! mas nada em minha melancolia/ Mudou! Palácios novos, andaimes, lajedos,/ Velhos subúrbios, tudo em mim é alegoria,/ E essas lembranças
pesam mais do que rochedos
.

A alusão ao poeta canônico da língua francesa e à destruição da velha Paris pela reforma empreendida por Haussmann, o arquiteto de Napoleão 3º, parece deslocada no cenário de Bacurau. Só que não. Tanto na “capital do século 19” quanto, dois séculos adiante, na vila fictícia que não consta no mapa, a destruição é movida por interesses semelhantes; como semelhante é a melancolia produzida por aqueles que não se reconhecem na paisagem destruída e reconstruída pela “força da grana que ergue e destrói coisas belas”. (Até hoje não sei se esse verso é otimista ou conformista.)

A triste atualidade de Bacurau, filmado antes das eleições de 2018, reside na constatação de que a grana, hoje, depende mais do que nunca da destruição daquilo que consideramos (estética ou eticamente) belo. Fica difícil imaginar o que poderia ser erguido nesse novo cenário de terra arrasada.

Quem escreveu esse texto

Maria Rita Kehl

Psicanalista, é autora de O tempo e o cão e Bovarismo brasileiro, ambos pela Boitempo.

Matéria publicada na edição impressa #28 nov.2019 em outubro de 2019.