Ciências Sociais,

Sonhos, transes e mirações

Para os povos indígenas, experiências transcendentais e subjetivas — sair de si — são imprescindíveis para trocar conhecimentos e estabelecer relações com os outros

26jul2023 | Edição #72

Os sons que capto são amplificados, escuto como a fera, eu sou a fera. […] A medida que ele (o urso) se distancia e que eu volto a mim, nós nos recobramos um do outro. Ele sem mim, eu sem ele: conseguir sobreviver apesar do que ficou perdido no corpo do outro; conseguir viver com aquilo que nele ficou depositado.

Nastassja Martin, “Escute as feras”

Ruídos

Outro dia li a notícia de que pesquisadores da Universidade de Tel Aviv descobriram que algumas plantas, quando estão sob estresse, por falta de água ou ao ter seus galhos cortados, emitem sons. Fui pesquisar e cheguei numa matéria do jornal inglês The Guardian. O que me chamou a atenção não foi tanto o relato da pesquisa — explicando que tais sons não podem ser ouvidos pelos seres humanos, somente por insetos e alguns mamíferos —, mas o encerramento. Depois de uma série de opiniões com mais ou menos entusiasmo, um pesquisador de Barcelona adverte que esses ruídos provavelmente não significam nada: “Qualquer sistema de tubulações que transporte um fluido gera sons e isso não significa que uma tubulação de água esteja tentando se comunicar com alguém”.

A declaração me deixou pensativa. Logo em seguida, talvez à guisa de inquietação, me veio a lembrança do belo documentário de Alberto Alvares, Tekowe Nhepyrun: a origem da alma, filmado na aldeia Y’Hovy, em Guaíra, no Paraná. Já não lembrava exatamente o que era, mas sabia que havia algo ali, algo que dialogava com o que eu tinha acabado de ler. Assisti ao filme de novo e cheguei na parte que buscava, quando um dos entrevistados comenta:

Dentro da mata existem árvores que cantam, assim dizia o meu avô. Todas as árvores grandes cantam. As árvores cantam fazendo cair a ventania. Para proteger das doenças, elas cantam também. Quando rezamos, são as árvores que nos acompanham com seu canto, assim dizia o meu avô.

Monstros

El sueño de la razón produce monstruos é o título de uma conhecida gravura do pintor espanhol Francisco Goya (1746–1828), pertencente à série Los caprichos. Nela, Goya se autorretrata adormecido sobre uma mesa tendo atrás de si uma série de seres noturnos: corujas, morcegos, um felino que parece ser um lince. A frase, em português, perde a ambiguidade que tem em espanhol, pois sueño significa tanto sono quanto sonho, ambiguidade essencial para interpretar a imagem. Assim, a razão — no sentido da razão cartesiana do “penso, logo existo” — aparece ao mesmo tempo como bênção e maldição. Se considerarmos que o sono da razão produz monstros, a frase nos avisa que, se a razão adormece, os pesadelos podem facilmente fazer vir à tona o que há de mais “primitivo” na psique humana. Aquilo que tanto tememos no outro, e principalmente em nós, viagem ao coração das trevas. Por outro lado, se considerarmos sueño enquanto sonho, a mensagem se transforma e aponta para um outro lado, quase oposto, o sonho da razão no sentido de desejo, de ideal da razão, ideal civilizatório, de um progresso ininterrupto. Esse também produz monstros. Ou seja, acreditar demais na razão (e na civilização que dela advém) pode nos levar aos mais terríveis abismos: guerras, genocídios, viagem ao coração das trevas.

Indivíduo

Mas não há como falar em razão sem considerar a ideia moderna de “eu”, pois são conceitos entrelaçados. Afinal, quem seria esse “eu” que pensa e logo existe, como nos diz Descartes? Esse eu que acredita tanto em si, em sua materialidade, em suas fronteiras. A partir do Renascimento pode-se falar no “eu” no sentido de uma consciência humana moderna, que já não aceita incondicionalmente a palavra de Deus ou dos deuses, se distancia dos mitos e busca provas na observação “objetiva” da natureza. Luzes do Iluminismo e a terra passa a girar em torno do sol. Na literatura, talvez uma das obras mais emblemáticas dessa passagem seja Dom Quixote, de Miguel de Cervantes. Dom Quixote pode ser lido como o indivíduo da Idade Média perdido num novo mundo, aquele que enlouqueceu, que acredita literalmente no que nos diz a ficção, os mitos, em vez de olhar com “objetividade” para os moinhos de vento. Indivíduo esse que mais tarde se metamorfoseará num personagem isolado numa ilha, Robinson Crusoé, empresa de um homem só em sua luta por dominar a natureza que tudo engole.

Acreditar demais na razão (e na civilização que dela advém) pode nos levar aos mais terríveis abismos

Em termos narrativos, adota-se cada vez com mais afinco a narrativa em primeira pessoa, que vai do romance epistolar, passando pelas vanguardas até chegar aos dias de hoje, sujeito encarnado na autoficção. Um eu que no capitalismo vai representar cada vez mais o eu da propriedade privada, do self-made man, filho da meritocracia, afinal, quem não conseguiu é porque não desejou, não trabalhou o suficiente. Em suma, para o bem e para o mal, um eu isolado dos demais, que tem consciência de si mesmo e, principalmente, controle sobre o mundo ao redor através de um saber que se dá na vigília; quanto mais desperto, melhor, quanto mais lógico num sentido cartesiano, melhor. Inserido na linha do tempo da evolução, um eu em busca do desenvolvimento espiritual, tecnológico, científico, numa corrida sem fim em direção ao futuro.

Algo além

Freud vai dizer que a partir da compreensão do inconsciente e de como ele funciona, não há como negar que “o eu não é mais senhor na própria casa”. Ou seja, ao contrário do que se imaginava na época (e ainda nos dias de hoje), estamos muito longe de ter controle de nós mesmos, da nossa tristeza ou felicidade, pois há algo que nos fala, que fala em nós e através de nós, e que nada tem a ver com o que chamamos de consciência. Esse algo que fala o faz através de sonhos, sintomas, atos falhos, arte. Um algo que nos extrapola, e que já existia antes de nós, fala dos que vieram antes, da língua em que estamos inseridos, de toda uma sociedade. Esse algo não só fala mas também deseja, e deseja à nossa revelia. Assim, não só o eu não é tudo que somos, mas também a nossa vontade não é tudo o que desejamos (e na maioria das vezes desejamos coisas contraditórias).

Outra forma de estar no mundo

Poderia parecer que o que nos adverte a psicanálise sobre as ilusões do eu, no alvorecer do século 20, se baseia num pensamento recém-descoberto, uma coisa completamente nova, como nos diriam as vanguardas. Mas não é o caso. Apesar do papel inegável de Freud, suas raízes sempre estiveram logo ali. Seja no próprio pensamento ocidental, seja em culturas que muitas vezes preferimos ignorar. É o caso do pensamento indígena, desprezado pela arrogância colonial, quase dizimado pelo genocídio, mas que resiste e aponta para uma outra forma de estar no mundo. Para outras formas de sonhar.

Faço aqui um breve parêntese para ressaltar que o pensamento indígena não é monolítico, nem atemporal, nem homogêneo. Existem no continente centenas de etnias com suas culturas e idiomas próprios. Apesar disso, é possível encontrar claras linhas de convergência entre esses povos e, com frequência, entre várias outras culturas não ocidentalizadas. Me detenho em dois aspectos, que se entrelaçam: a subjetividade expandida e a busca de conhecimento nos estados alterados de consciência, em especial no sonho e no transe. E é imprescindível destacar o que talvez seja a principal diferença entre essas epistemologias tão divergentes: para os povos indígenas, os estados alterados de consciência não são parte de uma busca do “verdadeiro eu”, do self ou de quem “eu realmente sou”, mas justamente o contrário — são focos de uma alteridade radical, um devir, um “tornar-se outro”. Abrir a possibilidade de comunicação com animais, plantas, mortos etc., alteridades com as quais, na vigília, temos dificuldade de dialogar. Em outras palavras, trata-se de uma expansão da subjetividade, não de sua redução a um núcleo “verdadeiro” ou original.

Espelho

Kahtiri Ēõrõ — Espelho da vida é uma das obras que Daiara Tukano, artista, professora, pesquisadora e ativista do povo tukano, apresentou na 34ª Bienal de São Paulo. Feita para a exposição Véxoa, na Pinacoteca de São Paulo, é de um manto de plumas vermelhas que recria e traz para o presente o manto tupinambá, originalmente feito com penas de guará e usado em rituais funerários, antropofágicos e outros eventos importantes. Os mantos plumários, tradição tupinambá, desapareceram devido às muitas violências coloniais e à extinção ou mudança no curso das aves usadas para esse fim. Os exemplares antigos que restam (do século 17) não estão no Brasil, mas em museus da Europa, reflexo do etnocentrismo que insiste em manter as culturas indígenas como troféus de guerra em museus, exposição de uma história interminável. Mas Daiara dá ao manto tupinambá uma nova leitura, uma nova vida.

O manto tupinambá nos veste e nos expulsa, mostrando que para além do eu há um outro

Em entrevistas, conta que usou penas de pato pintadas de vermelho e que confeccionou ela mesma o manto. No lugar do rosto que o capuz circunda, um espelho convexo. Daiara vestiu o manto numa performance durante a abertura de Véxoa. A ideia era se contrapor às imagens costumeiras lá expostas. “Na Pinacoteca, você tem quadros do descobrimento do Brasil [a tela A Providência guia Cabral, de Eliseu Visconti], da fundação de São Paulo, tem Antropofagia [tela de Tarsila do Amaral, de 1929], e a primeira coisa que você vê lá é a Moema [escultura de Rodolfo Bernardelli]. Ali estão todos os estereótipos visuais do Romantismo brasileiro que dizem que índio bom é índio morto ou ajoelhado na frente de uma cruz. Para quem é indígena, entrar num museu como a Pinacoteca e ver aquilo tudo… É agressão atrás de agressão, é uma barbárie visual”, disse em entrevista à agência Amazônia Real. A entrada de Daiara na Pinacoteca vestindo o manto tupinambá, um manto que em sua face espelhada revela a violência exposta da colonização, é ao mesmo tempo grito de guerra, resistência e reafirmação da identidade indígena do país.

A obra tem muitas possibilidades de leitura. Na Bienal de São Paulo, por exemplo, o manto não é performance, mas colocado na sala de exposições, onde recebe o público devolvendo o que está do outro lado. Quem observa a obra vê seu próprio reflexo nesse rosto-espelho, um reflexo diminuto, onde o eu se desfigura e encolhe para que surja, em seu lugar, um outro tipo de extremo. Quem, afinal, observa? Quem é observado? E o que surge de mim na miragem que me olha no tempo e no espaço? Essa reorganização do eu, na distância do espelho convexo, diminuído, transformado em nós, e reintegrado — por que não? — a uma outra noção de identidade, uma subversão das noções de sujeito e objeto. O manto tupinambá ao mesmo tempo nos veste e nos expulsa, mostrando que para além do eu há um outro, uma outra história do Brasil, uma outra realidade.

Subjetivar

Nos diz Davi Kopenawa, em A queda do céu, que a floresta que vemos não é a floresta que realmente existe, mas apenas uma pequena parte dela. Trata-se de uma outra floresta, muito mais densa, viva e povoada, em que espíritos, mortos e outros seres habitam. Para usar uma imagem mais próxima do saber ocidentalizado, essa outra floresta seria uma espécie de multiverso que ocupa o mesmo espaço, mas só pode ser acessada num estado alterado de consciência, em geral pelos xamãs. Uma floresta que, ao se revelar em todo o seu esplendor, guia seus habitantes, no caso os povos indígenas, pela senda de um bem-viver. Nos avisa Kopenawa:

Eu não aprendi a pensar as coisas da floresta fixando os olhos em peles de papel. Vi-as de verdade, bebendo o sopro de vida de meus antigos com o pó de yãkoana que me deram. […] Apenas quem toma yãkoana pode de fato conhecer a floresta […]. Nós, Yanomami, quando queremos conhecer as coisas, esforçamo-nos para vê-las em sonhos. Este é o modo de ganhar conhecimento.

Há uma outra forma de conhecimento, com base na oralidade, que passa pelo corpo e pela palavra que retorna, a palavra dos espíritos que se inscreve a cada novo xamã, a cada transe, a cada sonho, reagrupando-se em novas constelações. Também um saber que emerge a partir do sonho, do transe, provocado pelo uso da yãkoana (substância psicoativa) permitindo um outro tipo de acesso à verdade. Ou talvez, mais radicalmente, um outro tipo de verdade.

Que saber seria esse? Trata-se claramente de um conhecimento de resultados muito concretos, no qual o mundo visível e o espiritual se comunicam e, em especial, negociam. Pois os povos indígenas têm sua própria ciência, mas ela passa por outra lógica. Uma lógica que considera em todo ser humano, animais, plantas, montanhas, rios, estrelas, um sujeito, ou seja, uma posição subjetiva. E sendo assim, se todos são sujeitos, nada é objeto, e tudo deve ser negociado, sob pena de retaliações, do animal caçado, do rio que leva alguém ao fundo, da própria floresta. Tudo é vivo, tudo tem seu próprio olhar e perspectiva.

No que diz respeito ao estudo, à aquisição de conhecimento, muitas vezes, para que a negociação seja possível, para que o diálogo seja possível, é necessário não apenas ouvir o outro, mas ser o outro, sentir e pensar como o outro. Transformar-se no objeto estudado desfazendo as fronteiras entre ambos e desfazendo do próprio pensamento binário que nos guia, construindo uma narrativa de vozes entrelaçadas. Viveiros de Castro em A inconstância da alma selvagem, a partir de um diálogo com Tânia Stolze, resume a questão da seguinte forma:

[…] conhecer é “objetivar”; é poder distinguir no objeto o que lhe é intrínseco do que pertence ao sujeito cognoscente, e que, como tal, foi indevida e/ou inevitavelmente projetado no objeto. Conhecer, assim, é dessubjetivar […]. O xamanismo ameríndio parece guiado pelo ideal inverso. Conhecer é personificar, tomar o ponto de vista daquilo que deve ser conhecido […].

Tornar-se outro

Muitas vezes a ficção nos diz mais do que um relato objetivo. Então sigamos a rota dos sonhos e imaginemos um xamã. Imaginemos uma aldeia no meio da floresta, uma aldeia da qual, de um momento ao outro, queixadas, o principal animal de caça, tenham desaparecido. O xamã, nesta história inventada, mas não por isso menos provável, vai entrar num estado alterado de consciência, seja através de dança, dos sonhos, do uso de plantas de poder, e iniciará a sua viagem, sua tarefa. Esse xamã deixará o seu corpo físico, munido apenas do seu corpo espiritual, seu corpo-imagem, passará por uma metamorfose assumindo a forma de uma queixada e nessa nova roupagem ele viajará até onde se encontra o grupo das queixadas. Conversará com seus líderes, ouvirá suas reclamações e exigências: por que, afinal, elas se afastaram? Ouvirá, talvez: nos afastamos porque fomos desrespeitadas, porque um dos seus caçadores não soube acertar a flecha e matou um de nós com terrível sofrimento. Ou ainda que seus caçadores têm matado mais do que o necessário. Ou sabe-se lá que outras reclamações poderiam apresentar esses animais. O xamã vai então negociar, pedir desculpas, talvez, negociar outras coisas, não é possível saber, mas o resultado é que, depois desse encontro, metamorfoseado em queixada, vivendo entre elas, o xamã, se for bem sucedido, se despedirá respeitosamente e fará a viagem de volta.

Volta para contar a história. Em seu corpo humano, sabe que nunca mais será o mesmo, porque a metamorfose deixa marcas, algo da queixada que ficou nele, enigmático, indelével. E assim, não totalmente ele mesmo, nunca jamais ele mesmo, o xamã conversará com seu povo e explicará o que é preciso fazer para recuperar a caça e a sobrevivência.

A compreensão do xamã não passa pela observação de um objeto — eu observo o comportamento das queixadas —, mas por tornar-se uma delas. Há uma expansão do eu, daquilo que faz a personalidade do xamã, daquilo em que ele acredita, em sua própria visão de mundo, para tornar-se outro, tornar-se queixada (empreitada sempre perigosa) e, a partir disso, adquirir um conhecimento impossível sem a incursão. O tornar-se outro passa por afastar-se momentaneamente de si mesmo, através do sonho, do transe, desse espaço onde não somos mais quem somos. Somos outro. E nunca se é outro impunemente.

Entrelaços

Há muitas formas de se recuperar um manto. Glicéria Tupinambá, artista e ativista da aldeia Serra do Padeiro (Terra Indígena Tupinambá de Olivença), no sul da Bahia, resgatou a técnica de confecção utilizada por seus ancestrais, trazendo para o presente os saberes esquecidos do passado. Mas nunca totalmente esquecidos. Glicéria usa o termo “cosmotécnica” para explicar esse resgate, parte de um movimento de retomada que teve como ponto principal a luta pela recuperação de territórios indígenas. O resgate se intensificou quando viu um manto no Museu do Quai Branly, em Paris: “Senti que o manto falava comigo, que estava à minha espera. Fiquei entre o presente e o passado. Consegui vislumbrar o momento em que minhas parentes do período colonial fizeram o traje, com plumas, algodão cru, cera de abelha tiúba e agulha de tucum, uma espécie de palmeira. Ali, no museu, comecei a entender aquela antiga técnica de tecelagem”, relatou à revista piauí.

Esse início dá o tom do que será a longa trajetória da artista até conseguir confeccionar os seus próprios mantos, trajetória de erros e acertos até encontrar o ponto certo e as penas necessárias. Recuperou através de sonhos, intuições e conversas com o próprio manto um passado que parecia esquecido e, com ele, parte essencial da identidade de seu povo. O manto é, assim, objeto, obra de arte e ao mesmo tempo reescrita da própria história, uma escrita do transe, onde passado, presente e futuro correm paralelos e entrelaçados. O manto tupinambá não é peça morta num museu da Europa, ao contrário, ele fala e se tece a si mesmo em novas feituras, sai do museu, de sua prisão colonial, e se move em direção ao centro da alma e da vida.

Destino da alma

Volto ao documentário A origem da alma, de Alberto Alvares, do povo guarani ñandeva, que trabalha em seus filmes com a memória e espiritualidade de seu povo. No documentário, ele apresenta o olhar guarani para o surgimento e destino da alma, uma cosmovisão que está diretamente relacionada ao sonho como forma de conhecimento e como acesso à palavra poética, às belas palavras. Sobre o tema, Alberto Guarani comenta em entrevista: “Nós guarani sonhamos para poder caminhar. Você precisa ouvir o sonho como se você ouvisse um chocalho, como se você ouvisse uma reza, então você tem que ouvir o sonho também, para poder enxergar”.

Na espiritualidade guarani, o ser humano surge de um sonho. O pai sonha com a criança, conta então à mulher sobre o sonho e esta engravida, ou seja, recebe em seu corpo a alma anunciada. Nas palavras do antropólogo Bartomeu Melià: “Desde sua concepção como pessoa, o guarani é uma palavra sonhada. Quando um homem e uma mulher se unem sexualmente, trata-se apenas da ocasião para que se dê esse ato poético”. A palavra não é determinante apenas para a concepção, ela é quem nomeia e guia o sujeito no decorrer de sua caminhada na vida. Mas não se trata de qualquer palavra, de qualquer nome.

Tornar-se outro passa por afastar-se momentaneamente de si mesmo, através do sonho

Essa relação com o conhecimento onírico vai acompanhar a criança durante toda a vida. Inclusive na forma de acessar o nome que ela, ao contrário de outras culturas, não possui, mas incorpora. Pois o bebê não recebe um nome ao nascer, o nome é algo que vem depois, em geral quando a criança completa um ano de idade. Antes disso, ela está sujeita à cólera, raiz de todo o mal, explica Melià. O nome nunca é dado pelos pais, pois se trata de algo que já existe, e que está no mundo espiritual, à espera de ser pronunciado, a palavra-alma. O nome não é dado à pessoa, ele é a pessoa. O pajé precisa entrar em transe durante a cerimônia de batismo para acessar o nome sagrado da criança. Esse nome vai definir quem é aquela alma, de onde ela vem e como deve se comportar. Parte desse ritual pode ser visto no documentário de Alberto Alvares, um dos raros registros a que temos acesso desse acontecimento. Uma câmera que não olha de fora, mas que nas mãos de Alberto é sujeito, parte desse ritual. Uma câmera que não tem intenção de explicar nada aos “brancos”, e que por isso mesmo possibilita um mergulho na bruma espessa daquilo que não compreendemos. No filme, relata o pajé:

Nhanderu’ete mesmo é que envia a alma das crianças para as mulheres acolherem os seus filhos. Nhanderu’ete mesmo é que manda o espírito para nascer. Depois disso, não viemos de um lugar só para viver. A alma vem de vários lugares. Há os que nascem, vêm do sol nascente e do sol poente, também vêm do norte, do sul. Depois disso, nós rezadores acompanhamos as crianças que vão ser batizadas. Para as crianças, o Nhanderu’ete ainda não incorpora a palavra para falar, até com a idade de oito a nove meses não está incorporada. Quando completa dois anos, a palavra começa a se incorporar na cabeça da criança, e começa a experimentar a fala. Por isso, quando falamos, a criança passa a entender a nossa fala. Assim, as crianças passam a entender a fala, e já começam a experimentar a palavra. Depois disso, com a idade de três anos já se incorpora a fala na cabeça, para conversar como a gente. Quero dizer, na nossa língua antiga falamos mba’e mirim, nós mais velhos falamos mba’e mirim, conheço o mba’e mirim. Aquele que nos criou, que fez o mba’e mirim incorporar na nossa cabeça. Quando incorpora a palavra, já começa a falar, passa a entender tudo o que a gente fala.

Ao incorporar a palavra, a criança não só passa a falar e a compreender, ela também “se assenta” no mundo, passa a fazer parte dele, tornando-se sujeito. Ao mesmo tempo, a partir desse momento, é mais provável que a criança vingue. A palavra cria raízes. Muitas vezes, porém, pode acontecer de o rezador não conseguir acessar o nome verdadeiro da pessoa, e esta passa a carregar um falso-nome, o que pode causar doenças, depressão ou um caráter melancólico. A tristeza seria a consequência (poética) de carregar o nome errado, de não se saber quem se é de verdade. Uma doença da alma. Nesses casos é possível fazer nova cerimônia e recuperar o verdadeiro nome. O nome anterior é então descartado junto com as doenças e tristezas que ele possa ter trazido. Para a cultura guarani, tudo é palavra, a constituição e criação do mundo se dão através dela, e viver bem nada mais é do que encontrar as belas palavras. Não é qualquer palavra, não é qualquer mundo.

 Travessia

Numa época em que o projeto civilizatório do ocidente parece ter chegado a um beco sem saída, a arte e o pensamento indígena apontam para outras formas de subjetividade e, por consequência, outras formas de estar no mundo, de perceber a realidade e de adquirir conhecimento. No que diz respeito à subjetividade, de uma expansão do “eu”. Não no sentido de um desenvolvimento (de um fortalecimento do ego), mas de uma amplificação. Há um sujeito, no sentido de um “penso, logo existo”, mas a sua existência não se resume a isso, nem se fixa nesta certeza, pois carrega a percepção de que o eu é também um outro, estrangeiro a si mesmo, e precisa desse outro para realizar suas trocas com o meio.

Um eu que abdica de suas certezas a cada transe, a cada sonho, permitindo que aflore, que venha à tona aquilo que ainda não se é, mas que está lá enquanto possibilidade. Um “eu” expandido, que sai de si para acessar conhecimentos de outro modo inalcançáveis, um eu que se metamorfoseia e que volta transformado, carregando no corpo, na memória do corpo, a experiência da metamorfose, que é a experiência do encontro com a alteridade. Um eu que carrega não apenas uma alteridade espacial, mas também as palavras dos que vieram antes (dos ancestrais) e dos que virão depois, num tempo que é cronológico e atemporal. Um eu que é sujeito, e ao mesmo tempo não é. Alteridade escrita na pele. Travessia cheia de perigos.

Para a cultura guarani, tudo é palavra, a constituição e criação do mundo se dá através dela

É através dessa fluidez da identidade que é possível conhecer o mundo e, principalmente, estabelecer trocas com ele, com outros sujeitos, sejam estes objetos, animais, plantas, montanhas ou outros seres humanos. Trocas entre sujeitos que têm suas próprias necessidades e perspectivas. Nas culturas indígenas, em geral, busca-se o equilíbrio dessas trocas. Um mundo de trocas injustas, ou seja, um mundo que objetifica o outro, é um mundo em desequilíbrio, em que o “explorado” cobrará seu preço, seja este o animal que não se deixa mais caçar ou adoece o caçador, o semelhante que retorna em pesadelos e maldições ou o próprio planeta que nos nega a vida. Hanna Limulja fala sobre essas trocas em seu livro O desejo dos outros: uma etnografia dos sonhos yanomami:

Nota-se a relação entre sonho, caça e xamanismo. Aquele que come a carne que caça não sonha, tampouco pode ver os xapiri pë (espíritos). Um bom caçador, assim como um bom sonhador ou um xamã, é antes de tudo alguém que troca e que, portanto, estabelece relações com os outros.

Para estabelecer relações com os outros é preciso sair de si, acreditar menos em si e mais naquilo que surge desse encontro com o desconhecido. Um eu em constante transformação, em constante devir (um devir caça, devir árvore, devir manto tupinambá), mas que mesmo assim, ou talvez por isso mesmo, sabe quem é, de onde vem e quais caminhos, espirais podem se abrir. Um eu que transita sem medo pelos meandros do mundo onírico, sabendo que não se trata de espaços paralelos, sonho e vigília, verdade e ficção, mas que, qual uma fita de Moebius, o lado de dentro é também o lado de fora. Sempre é.

Quem escreveu esse texto

Carola Saavedra

Escritora e tradutora brasileira nascida no Chile, autora de Com armas sonolentas: Um romance de formação (2018) O manto da noite (2022), publicados pela Companhia das Letras.

Matéria publicada na edição impressa #72 em julho de 2023.