A sabedoria das crianças

Literatura, Rebentos,

A sabedoria das crianças

Primeiro livro para crianças de Ailton Krenak mostra o que os mais novos podem nos ensinar com seu saber intuitivo

01out2024 • Atualizado em: 30set2024 | Edição #86 out
Ilustrações de Rita Carelli

Para muitos povos indígenas, a infância tem um lugar bem diferente do que costuma ter no mundo ocidentalizado. Davi Kopenawa, em A queda do céu (Companhia das Letras, 2015), explica que para os yanomami crianças não estão num lugar de saber inferior aos adultos, nem são seres tabula rasa que só têm a aprender. Ao contrário, elas têm muito a ensinar, pois, como até pouco tempo atrás habitavam o mundo espiritual, teriam acesso direto a esse espaço dos sonhos onde o saber está. Algo parecido nos diz Ailton Krenak em Futuro ancestral (Companhia das Letras, 2022):

Em vez de serem pensadas como embalagens vazias que precisam ser preenchidas, entupidas de informação, deveríamos considerar que dali emerge uma criatividade e uma subjetividade capazes de inventar outros mundos.

Kuján e os meninos sabidos, primeira obra de Krenak destinada ao público infantil, é também um livro profundamente filosófico. Baseada numa narrativa da cosmogonia krenak que ele já abordou em outras ocasiões, inclusive em A vida não é útil (Companhia das Letras, 2020), esta versão surge acompanhada das ilustrações de Rita Carelli, que passou parte da infância em aldeias indígenas e relatou essa experiência no romance Terra preta (Editora 34, 2021), vencedor do prêmio São Paulo de Literatura.

A história começa assim:

Contam os antigos que quando o Marét-khamaknian terminou a criação do mundo, viveu um tempo entre suas criaturas, cantando e dançando com seus filhos. Depois, decidiu se retirar do paraíso terrestre.

Nesse tempo de convivência diária com suas criaturas, o criador aproveita para ensinar, a partir do exemplo, o bem-viver a seus filhos. Mais tarde, considerando que eles aprenderam e se tornaram independentes, vai embora. Deste ponto em diante, as criaturas têm que se virar sozinhas.

Devemos saber com quem dialogamos para podermos manter o equilíbrio entre os seres

Tempos depois, Marét-khamaknian decide voltar para ver o que elas andam fazendo, e é quando surge a dúvida: e se elas em vez de pôr em prática o que aprenderam, tivessem se tornado seres ruins? Diante da questão, Marét-khamaknian resolve voltar na forma de um kuján, um tamanduá. Porém, sem ser reconhecido, é logo preso e levado até a aldeia onde deveria servir de alimento numa festa. 

As crianças recebem a missão de alimentar o tamanduá até que chegasse o momento de ser servido. É quando aparecem os meninos Roti e Cati, os únicos que percebem que não se trata realmente de um tamanduá, mas de outra coisa. Um ser misterioso, sagrado. Eles o chamam respeitosamente de avô, ouvem suas histórias e o alimentam com mel e cará em vez de formiga e cupim.

A história segue, mostrando essa interação entre os que sabem e os que não sabem lidar com o outro. E aqui, não por acaso, são as crianças que sabem. Um saber intuitivo e ancestral que lhes diz quando é o momento de devorar e quando é a hora de ouvir o que o outro tem a dizer e deixá-lo ir embora. Em outras palavras, devemos saber com quem dialogamos para podermos efetuar trocas justas, capazes de manter o equilíbrio entre os seres.

Criador e criaturas

O livro não tem uma moral da história nem tenta ensinar um modo único de fazer as coisas, mas aponta com destreza para as nossas mazelas: a ganância, o egoísmo, a ignorância, a destruição do outro. Diante da pergunta dos meninos sobre o que ele achara dos seres humanos, Marét-khamaknian responde: “Mais ou menos”. A resposta permite muitas leituras, mas vale a pena trazer o olhar que o próprio Krenak nos lança em A vida não é útil:

A ideia dos krenak sobre a criatura humana é precária. Os seres humanos não têm certificado, podem dar errado. Essa noção de que a humanidade é predestinada é bobagem. Nenhum outro animal pensa isso. Os krenak desconfiam desse destino humano, por isso é que a gente se filia ao rio, à pedra, às plantas e a outros seres com quem temos afinidade.

Kuján e os meninos sabidos é uma história infantil para todos nós.

Quem escreveu esse texto

Carola Saavedra

Escritora e tradutora brasileira nascida no Chile, autora de Com armas sonolentas: Um romance de formação (2018) O manto da noite (2022), publicados pela Companhia das Letras.

Matéria publicada na edição impressa #86 out em outubro de 2024. Com o título “A sabedoria das crianças”

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