Ciências Sociais,
Teatro em transe
Xamã narra em livro a alucinação coletiva vivida durante uma encenação com Zé Celso Martinez Corrêa e o Oficina
06jul2023 | Edição #72Quando Saturno estava passando pela Casa 12 do mapa astral de Ana Vitória Vieira Monteiro, ela sentiu uma grande aflição. Apavorada, foi buscar aconselhamento com um astrólogo de confiança, Hector Othon. Era junho de 1996. Na visão dela, aquele trânsito astrológico significava prisão, morte ou doença. Mas Hector, “muito leve com as coisas”, enxergava a situação de outra maneira. Ele, que além de astrólogo é ator, propôs a Ana Vitória que o acompanhasse ao Teatro Oficina, onde o diretor José Celso Martinez Corrêa ensaiava Bacantes, tragédia de Eurípedes em montagem emblemática na história da companhia.
O convite não era para que Ana Vitória apenas assistisse a um ensaio, mas também que levasse aos atores ayahuasca, bebida ritual feita a partir de um cipó, que ela tomou pela primeira vez em Cusco, no Peru, em 1982. Aos poucos, ela foi se inserindo nesse universo e, àquele tempo, já conduzia trabalhos em que se tomava o chá. O grande abalo indicado no mapa astral, então, não era algo negativo.
Foram oito horas em que os atores ‘não esqueceram nenhuma palavra, nem erraram nenhuma marcação’
“Foi maravilhoso, quem viveu aquele momento saiu de lá outra pessoa”, lembra a autora. Foram oito horas (a longa duração é quase marca registrada de Zé Celso) de transe e encenação, em que os atores “não esqueceram nenhuma palavra, nem erraram nenhuma marcação”. A alucinação coletiva de elenco, operadores de luz, Ana Vitória e outros poucos presentes é um dos episódios narrados por ela no livro Mãe floresta: minha vida com ayahuasca.
Na época em que apareceu no Teatro Oficina com um garrafão de cinco litros de ayahuasca, Ana Vitória — hoje com 76 anos — ainda não realizava trabalhos regulares no sítio Porta do Sol, seu centro de estudos xamânicos, em Mairinque, interior de São Paulo, como faz desde 1997. A comunidade ayahuasqueira olhou torto para o que ela tinha feito no Oficina, porém, segundo ela: “O ator tem facilidade de entender o transe, porque ele já interpreta outra pessoa”.
Curandeira urbana
Muitas descobertas de Ana Vitória com ayahuasca aconteceram na sua antiga casa, no bairro da Saúde, Zona Sul de São Paulo. Atualmente, ela vive no bairro vizinho, Aclimação, em um condomínio arborizado, de um verde exuberante que destoa da maior parte da paisagem paulistana. Seu apartamento é decorado com imagens indianas, incas, uma camisa do Corinthians sobre uma poltrona e muitas plantas nas janelas. A vida na cidade não a incomoda. Para passar o tempo, faz bordados, que são oferecidos como prêmio em rifas ou ajudam a enfeitar a sala. Mas, quando escreve, as experiências com o transe são seu assunto principal.
Na primeira parte de Mãe floresta, ela não economiza nos detalhes. Entre eles, pensamentos que ocorreram durante o transe, de visões de templos gregos e seres da natureza que dançam na sua frente a breves e prosaicos arrependimentos: “Por que faço isso comigo? Poderia ter ido ao cinema”, ela se pergunta em uma de suas primeiras experiências, mostrando que não falta sinceridade nem bom humor à narradora. Desconforto físico, falta de concentração, vontade que os trabalhos acabem logo, tudo isso convive com a mente que se move “tanto no sentido horizontal quanto no vertical”, como ela explica, gesticulando com as mãos posicionadas como se segurasse um cérebro à sua frente.
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Tanto a atriz de teatro e novelas Leona Cavalli, que se refere a Ana Vitória como “madrinha”, quanto o editor Alexandre Staut consideram Mãe floresta uma obra “corajosa”. Ana Vitória não nega o elogio, pois, segundo ela, é inédito alguém narrar o próprio transe: “Estou me expondo”. Ao mesmo tempo, afirma que as descrições dos momentos em que está sob o efeito da ayahuasca ficaram aquém da realidade: “Achei que devia falar mais, mas não há palavras. Se não há palavras, eu vou com a minha palavra mesmo”. Ela argumenta que o ineditismo e a identificação que outras pessoas podem ter ao relacionar o que ela conta com suas experiências de transe são os maiores atributos do seu livro.
A justificativa sobre a escrita ecoa a infância da autora, que é também diretora de teatro e dramaturga. Quando pequena, ela foi apresentada aos livros por sua avó, quis ser escritora, mas logo desistiu: “Ela me mostrou os filósofos, perguntou se eu tinha algo a acrescentar. Então eu já falei que não dava para escrever nada”. Aos poucos, Ana Vitória foi encontrando assunto, publicou peças de teatro — algumas delas encenadas pela própria Leona —, poemas em homenagem a deuses gregos, textos sobre a superação do vício em cigarro e, finalmente, os relatos de Mãe floresta: minha vida com ayahuasca sobre o que chama de verdadeiro transe: “É aquele que quando acaba, ele não apaga e o resultado continua com você”.
Matéria publicada na edição impressa #72 em julho de 2023.