Arte,
Beleza subvertida
Na maior mostra de arte do mundo, a estética cede protagonismo às experiências sociopolíticas
26ago2022 | Edição #61
Intervenção do romeno Dan Perjovschi na fachada do museu Fridericianum durante a Documenta de Kassel [Nicolas Wefers]
Dois indivíduos procuram um recipiente para armazenar copos e garrafas durante uma reunião de partido político. Encontram uma banheira cheia de feltro, graxa e bandagens, que limpam de modo impecável. O ano é 1973, o local é a cidade alemã de Leverkusen, e a banheira é — ou era — uma obra do artista Joseph Beuys. Uma década depois, Beuys instala cinco quilos de manteiga no canto de seu ateliê em Düsseldorf, material que ali permanece se decompondo por quatro anos até que um zelador aparece para limpar os “detritos”. Em que medida têm culpa os depredadores de graxa e gordura, esses iconoclastas da arte conceitual (dos quais Beuys não foi, é claro, a primeira nem a última vítima na história da arte)? E, antes disso, a pergunta secular sobre a qual nunca se fez acordo: o que é arte?
Visitantes da Documenta — a maior exposição de arte do mundo, que ocorre a cada cinco anos em Kassel, na Alemanha, desde 1955 — podem se fazer a mesma indagação. Em sua 15a edição, o evento tem uma curadoria ineditamente grupal, a cargo do coletivo Ruangrupa, da Indonésia, que propôs como tema o conceito de lumbung — termo para os celeiros comunitários de arroz onde o excedente é armazenado para proveito comum. O grupo convidou catorze coletivos sobretudo do chamado Sul global (relativo a países em desenvolvimento), que convocaram um número recorde de 1.500 artistas. O resultado é uma mostra menos preocupada em difundir narrativas estéticas consolidadas e mais dedicada a provocar reflexões.
Uma das mais intrigantes surge dentro de uma igreja católica. Tomado pelo coletivo haitiano Atis Rezistans, o espaço sagrado é povoado profanamente por torres de comprimidos e esculturas de soldados com falos gigantes — tudo coexistindo com imagens da Virgem e do Redentor. Uma enorme estrutura suspensa imita a geografia da favela de Porto Príncipe onde o coletivo organizou em 2009 a 1a Bienal do Gueto, em um espelhamento típico da cosmologia vodu. O trabalho, que discute a importância da revolução haitiana para a libertação negra, transforma momentaneamente relações consideradas impraticáveis em diálogos transculturais possíveis.
No térreo do museu Fridericianum — um dos locais considerados mais nobres da mostra, que se espalha por quase quarenta pontos da cidade —, Graziela Kunsch, única brasileira desta Documenta, instalou um espaço público para acolher bebês de até três anos inspirado na abordagem da pediatra austro-húngara Emmi Pikler. Uma creche. Em um porão na região central, o coletivo indiano Party Office instalou uma boate fetichista feita por e para “pessoas trans, neurodivergentes, negros, indígenas e pessoas de cor”. Para quem está acostumado a pensar a arte pendurada em um cubo branco, há um grande salto até igrejas, creches e boates fetichistas.
Acusações
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A “equipe de conscientização” especialmente treinada pelo Party Office para ajudar em situações de perigo não impediu que o coletivo sofresse ataques transfóbicos e, em mais de uma ocasião, pessoas vestidas com uniforme do Exército invadiram a igreja acusando os artistas haitianos de satanismo (os bebês, até o momento, seguem imunes). A problemática que ganhou as manchetes de jornal do mundo todo, no entanto, tem tônica acentuada em uma exposição sediada na Alemanha: o antissemitismo.
Exibido sem solavancos na Austrália em 2002, um enorme mural intitulado Justiça do Povo, do coletivo indonésio Taring Padi, instalado em uma praça de Kassel, foi retirado quatro dias após a abertura da Documenta. Com doze metros de largura, o painel retrata, entre centenas de elementos, dois judeus: um com chapéu da polícia nazista e outro como integrante do Mossad, o serviço secreto de Israel. Os artistas disseram se tratar de uma obra contra a violência da ditadura militar de Suharto, na Indonésia: “Não há intenção de relacioná-lo, de forma alguma, com o antissemitismo. Estamos desolados que detalhes sejam compreendidos de modo diferente de seu propósito original”. Mais complexas, outras acusações se embaralham com críticas ao tratamento de Israel aos palestinos, caso daquelas dirigidas ao coletivo The Question of Funding, que seria apoiador do BDS (Boicote, Desinvestimento, Sanções), espécie de bloqueio econômico, acadêmico, cultural e político a Israel que divide opiniões (até ao Nobel da Paz já foi indicado). Diante da crise, Sabine Schormann, diretora-geral da Documenta 15, deixou o cargo em julho.
Esta edição terá destaque na historiografia da Documenta, mas não só pelas controvérsias. Tendo como pilar oficial desde a abertura, nos anos 50, a intenção de apresentar uma produção artística plural e democrática, o discurso somente agora vira prática. Os países do Leste Europeu só ganharam espaço significativo nos anos 70; a homogeneidade dos artistas foi escancarada pelo coletivo norte-americano Guerrilla Girls nos anos 80, com um cartaz que questionava a participação 95% branca e 83% masculina; e a primeira curadoria não branca aconteceu apenas em 2002, com o nigeriano Okwui Enwezor.
Intervenção do romeno Dan Perjovschi na fachada do museu Fridericianum durante a Documenta de Kassel Nicolas Wefers
Nesta Documenta, a multiplicidade de vozes — tanto em relação à quantidade de artistas como ao deslocamento de nacionalidades para um eixo não ocidental, com as colônias ocupando o território dos colonizadores — coloca no holofote temas urgentes antes relegados a segundo plano. A insegurança política é tema dos documentários da iraquiana Rijin Sahakian; a xenofobia é abordada pelo bengali-britânico Hamja Ahsan em letreiros que protestam contra a islamofobia; a ditadura e a repressão são ilustradas nos desenhos do Instituto de Artivismo Hannah Arendt, de Cuba; a escassez de água é retratada no filme do duo chinês Cao Minghao & Chen Jianjun; o desperdício no mundo da moda é simbolizado pela instalação de roupas descartadas do grupo queniano Nest Collective, e por aí vai. A militância não é exceção, mas regra.
Mais do que um objeto comercial ou um conjunto de valores estéticos, a arte aqui é entendida como experiência social e política e práxis catalisadora de mudanças. O conceito não é novo, mas sua apresentação em tamanha escala e visibilidade, sim. Em um universo rendido aos caprichos do mercado e, especialmente, nestes tempos combativos, é de admirar. Assim, lumbung não é apenas um tema, um conceito, mas uma prática, como escreve Harriet C. Brown no texto que abre Lumbung: contos de mutirão (Dublinense). O livro, dirigido pelo Ruangrupa, reúne escritores de sete países, incluindo a brasileira Cristina Judar, que elaboram a ideia de comunalidade — ou mutirão, no Brasil; talkoot, na Finlândia; guanxi, na China; e ubuntu, em diversos países africanos.
Em 1982, Beuys, o mesmo das obras arruinadas, participou da Documenta 7 com um projeto ambicioso: a plantação de 7 mil carvalhos — árvore historicamente apropriada pelo nazismo — em Kassel, que havia perdido metade de suas árvores na Segunda Guerra. A contagem seria feita com o auxílio de 7 mil pedras, empilhadas no mesmo local onde jaziam as vítimas dos ataques aéreos. O artista morreu em 1986, poucos meses antes de a última árvore ser fincada. Quarenta anos depois do projeto comunitário pensado por Beuys, é novamente por meio da coletividade que a cidade — e o mundo da arte — volta a confrontar questões adormecidas, mas urgentes.
Matéria publicada na edição impressa #61 em julho de 2022.
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