

Perspectiva amefricana,
Ser errante, ser inteira
Escritora sul-africana Rešoketšwe Manenzhe articula testemunho e invenção em narrativa que revela a fabricação do regime do apartheid
01jul2025 • Atualizado em: 30jun2025 | Edição #95Há livros que sussurram, como se pedissem licença para existir. Há, ainda, os que assombram e deixam rastros de memória interrompida, fragmentada. Errantes, da escritora sul-africana Rešoketšwe Manenzhe, não se limita a nenhum desses gestos. Mesmo depois de encerrado, o livro caminhou comigo, alojado em meu corpo como se a linguagem tivesse adquirido um sentido novo.
Originalmente publicado em 2021, o romance chega ao português na tradução sensível de Stephanie Borges. É perceptível o cuidado em preservar a respiração do texto, o ritmo das pausas desta narrativa que não se apressa nem se rende a uma linearidade apaziguadora. Embrenhar-se pelo universo de Manenzhe é como se mover em dobras que se abrem com o tempo, como se a própria estrutura narrasse a errância, o deslocamento, a dispersão e as memórias.

A autora escreve como quem conhece intimamente camadas de silêncio depositadas pela história oficial. Não apenas silenciamentos explícitos, mas também os sutis, intergeracionais, transmitidos pelo gesto contido e pelo que se cala diante do trauma e da brutalidade colonial. Há no romance uma escrita que recusa com firmeza qualquer forma de espetacularização da dor. Errantes, nesse sentido, é como uma longa meditação sobre deslocamento. Não só o físico, que muda povos inteiros de lugar, mas o abalo mais profundo da identidade fraturada entre pertencimento e desenraizamento, entre o desejo de um chão e a consciência de que esse chão pode ter sido arrancado, contaminado e até mesmo nunca ter existido.
A autora escreve como quem conhece camadas de silêncio depositadas pela história oficial
Nesse não lugar, nessa dispersão, a escrita se instala, não para costurar a ruptura, mas para habitá-la com lucidez. Embora a história preserve em grande parte sua tessitura literária, é importante observar que há passagens nas quais a narrativa parece se aproximar do ensaio, quase assumindo um tom mais informativo para contextualizar aquilo que a ficção apenas sugeriria. Isso não enfraquece o texto; antes soa como escolha consciente da autora, que movimenta os limites do gênero e explora mais esse formato em escrita diarística, ainda que presente em algumas passagens de diálogo.
Manenzhe articula o íntimo e o histórico, memória e denúncia, sem temer os cruzamentos entre testemunho e invenção. Esse movimento é importante para ocasionar a pergunta insistente sobre quem pode errar, quem pode se espalhar e circular sem ser punido, quem tem o direito de vagar sem que sua existência seja lida como incômoda ou indesejada.
Ao escrever sobre a errância, a autora convoca uma constelação de sentidos que atravessam raça, gênero, classe, herança colonial e história. A errância de seus personagens não se apresenta como desorientação, mas como desterro e tentativa de reinscrição. Assim, ao buscarem abrigo, ao viverem experiências de dispersão, não o fazem porque idealizaram uma chegada ou um destino pacificado. O abrigo procurado não é para pouso definitivo, mas tentativa de sustentar a própria existência diante de um mundo que nega o direito de permanência. E essa, quando se apresenta, o faz não como estável, mas como insistência na própria presença e humanidade.
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Ser errante, como está posto no romance, não significa uma dispersão vazia, porque é carregada de densidade e significados. As personagens mulheres encarnam a história em cada deslocamento que experienciaram, buscam recompor laços, reconstruir vazios forçados e mantêm viva a tensão entre ruína e reconstrução. Esse movimento me levou à noção de enraizamento da filósofa francesa Simone Weil, segundo a qual o vínculo não se encerra como apego, mas como necessidade de ligação com o mundo.
A errância de Manenzhe não se opõe ao enraizamento, e suas personagens buscam raízes mesmo quando andam. Quando o chão falta, quando não há terra firme, resta a linguagem, a memória, e, por meio dessas forças, as personagens criam espaços simbólicos em que possam respirar. Ou, ao menos, tentam.
Segregação
A escolha de ambientar a narrativa no ano de 1927 não é só um detalhe histórico, mas um gesto político. Naquele ano, foi promulgada na África do Sul a chamada Lei da Imoralidade, que proibia relações sexuais e amorosas entre pessoas brancas (europeus) e negras (nativos), marcando uma das primeiras institucionalizações legais da segregação racial que, décadas depois, tomaria a forma sistematizada e abertamente violenta do apartheid.
Ao situar sua trama nesse período anterior à consolidação oficial do regime, que durou de 1948 a 1994, Manenzhe revela como o racismo estatal não surgiu de repente, mas se assentou pouco a pouco, por meio de legislações que naturalizaram a hierarquização racial, o controle dos corpos e a divisão social, política, econômica e dos afetos. O romance obriga a ver que o apartheid não nasceu em 1948 com uma face abrupta e monstruosa, mas foi se construindo em silêncios, em decretos, em normas morais que se infiltravam no cotidiano.
Narrar 1927 é, nesse sentido, recuar no tempo para desmontar a ilusão de que a violência racial tem um ponto fixo de origem e expor como o colonialismo se disfarça de legalidade e a brutalidade começa, muitas vezes, sob a aparência de ordem. Ao recuperar esse momento de inflexão histórica, o livro ilumina a fabricação do regime segregacionista e anuncia que a literatura pode ser também um instrumento de desvelamento da história.
Entre o trauma e a reinvenção, Errantes opera como uma partilha de histórias e uma sucessão de partidas e repartidas. Nesse cenário, ser errante transforma-se em modo de existência que carrega o direito de buscar, com dignidade, um lugar onde se possa estar inteira. Manenzhe nos diz que narrar é revidar o apagamento e promover registro e reinvenção.
Matéria publicada na edição impressa #95 em julho de 2025. Com o título “Ser errante, ser inteira”
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