

Crítica Cultural,
Lutas de classe
Tati Bernardi e Vincenzo Latronico miram nas elites culturais de São Paulo e Berlim e acertam na condescendência
17abr2025Tati Bernardi e Vincenzo Latronico fazem ficção a partir dos privilégios de classe que, ao que tudo indica, conhecem bem. A boba da corte pretende ser uma versão paulistana e “bem-humorada”, “irônica” ou “cáustica” (adjetivos colhidos na zona cinza em que crítica, jornalismo e públi se misturam) dos relatos de mudança de classe que são o alicerce da obra de Annie Ernaux e Édouard Louis. As perfeições, o livro do escritor italiano, é uma “homenagem” ou “reescrita” (a zona cinza produz muitas definições definitivas) de As coisas, o romance experimental de Georges Perec, atualizado da Paris dos anos 60 para a Berlim de hoje. Ambos cultivam altas ambições em criticar o mundo dos bem-postos e o mal-estar da abundância. Pretensão e água benta, como se sabe, são livres para consumo imoderado.
Jamais me ocorreria, é bom que se diga, aproximar Tati de Ernaux ou Louis e tampouco comparar Latronico com Perec. Não seria justo com ninguém. São eles, os autores, que insistem na associação em entrevistas e até nas epígrafes que escolheram. Em A boba da corte, uma das citações vem do Édouard Louis de Mudar: método; Latronico, é claro, pesca uma frase em As coisas. O papel aceita tudo, já dizia o velho ditado, velho do tempo do papel. Eu mesmo, por exemplo, posso me declarar herdeiro da tradição crítica de Edmund Wilson. O diabo é que no bololô do mundo digital, há quem acredite — neles, não em mim, bem entendido.

Parece que é esse o caso quando A boba da corte vem sendo pacificamente tratado na tal zona cinza, que avança sobre parte significativa do chamado jornalismo cultural, como exemplo de “autossociobiografia”, termo que Annie Ernaux inventou para o ponto de vista de onde narra suas histórias de mudança de classe. No complexo publi-jornalístico há ainda menos dúvidas, por motivos óbvios, de que o romance seja exemplo de “autoficção”. E o problema, pelo menos para mim, começa nesses dois “autos” aí.
Além do umbigo
Como aposto à “sociobiografia”, a partícula “auto” é encrenca. Remete à difícil tarefa de olhar para a própria trajetória com distância, buscando contextualizar e entender a vida para além do umbigo, numa trama de fatores pessoais, políticos, sociais — e, é claro, narrativos, pois se trata de ficção e não de tese. Já o “auto” de autoficção está mais para autoindulgência, liberando o umbigo para ser princípio e fim, em vários sentidos. Não há traço da primeira tendência e abundam as marcas da segunda na narradora autorreferente de A boba da corte, depurada em colunas na Folha de S. Paulo, podcasts e livros como Depois a louca sou eu (2016) e Você nunca mais vai ficar sozinha (2020), ambos publicados pela Companhia das Letras.
Quando conhecemos Tati, a personagem — a autoficção pede que joguemos estes jogos —, encontramo-la muito bem instalada na parte rica de São Paulo. Nas margens da cidade posuda ficaram família, estilo de vida, valores anacrônicos. No abismo entre um mundo e outro, transposto inicialmente pelo trabalho na publicidade e, depois, pela literatura, a narradora se descobre em inapelável solidão. E, no conforto da nova vida que construiu para si, se inquieta em flagrar hipocrisias variadas, contradições um tanto simplórias, futilidade a rodo, inconsistência. Pressionada pelas circunstâncias, ela cria desconfortos em série que, da etiqueta social ao sexo, vão do divertido ao constrangedor.
Morder a mão vil de quem afaga tem a idade das pedras de Augusto dos Anjos e é bela tradição literária. Mas Tati, a personagem — ou seria a autora? — faz mais barulho do que abocanha. Ela não trabalha no ramo da demolição, prefere o investimento mais conservador do histrionismo. E o #prontofalei que dá ritmo a seu texto pode ter tanto efeito e tão pouca consequência como uma hashtag bem posta.
Os autores fazem ficção a partir dos privilégios de classe que conhecem bem
Mais Lidas
Aos modos cool, ela — a narradora? a autora? — responde com estridência, contrapõe trabalho a herança, confronta reticência amorosa com paixão e, aqui e ali, insinua que a vida é mais real longe dos bairros arborizados de São Paulo. Mas é tudo brincadeira, tudo divertimento. Explorar causas, consequências, desdobramentos? Nem pensar. Para a narradora — para a autora? — a retórica da autodepreciação, que maneja bem, basta como ponto de vista crítico. Tanto que, quando o livro termina, tudo está onde sempre esteve. #tamojunto, na alegria e na ironia.
Tati, a escritora, costuma afirmar que é discriminada por não ter estudado nos colégios de elite de São Paulo, por comandar podcasts e não se enquadrar num estereótipo de escritor pobretão. A plena inserção nos meios intelectuais, editoriais e midiáticos a desmentem — bem como a recepção generosa ao novo romance, a começar por esta Quatro Cinco Um. Mas talvez esse discurso se deva a Tati, a personagem, se adiantando à autora na criação de uma outsider imaginária, fantasia de inadequação ao mundo a que ela pertence de fato, com força e com vontade.
Mesmo tema
Como projeto e realização, As perfeições é uma variação em torno do mesmo tema. O narrador de Vincenzo Latronico é desde sempre pouco pessoal e muito “literário” (aspas necessárias). O romance não é apenas um diálogo temático, mas emula o estilo distanciado de As coisas, que tem como subtítulo, não por um acaso, uma história dos anos 1960. Há exatas seis décadas, quando foi lançado, causou furor na França e, naquele 1965, deu o prêmio Renaudot ao estreante, que já tinha enfrentado três recusas de outros originais.
Jérôme e Sylvie, os protagonistas de As coisas, trabalham na “profissão do momento”, realizando pesquisas de opinião; Tom e Anna, protagonistas de As perfeições, são “nômades digitais” (aspas necessárias) que trocaram a Itália por Berlim e ralam dia e noite em seus laptops. Do dinheiro ao status, o casal francês ocupava as posições inferiores da rígida cadeia alimentar parisiense e só pensa em ascender pelo consumo. Os italianos supostamente também vivem à margem, se veem como os europeus pobres, do sul do continente, que têm como triste utopia a vida hipsterizada. Ser é ser aceito e percebido no mundo berlinense.
Latronico retoma a obsessão descritiva de Perec: predinhos “charmosos”, apartamentos cacarecados, móveis, objetos e emoções são inventariados em tom deliberadamente monocórdio — uma toada difícil de encarar no original e quase impossível na cópia, quer dizer, homenagem. E tome piso de madeira, café orgânico, cerveja artesanal, pratos usados da vovó, cartazes antigos, luminárias antigas, eletrodomésticos moderníssimos, o último objeto do design, o primeiro vintage: cada página acrescenta novos elementos, materiais ou não, a um pesadelo clean, ascético. No círculo de amigos ninguém bate ponto: todos são vagamente artistas.
Se ‘A boba da corte’ está mais para uma coleção de crônicas, ‘As perfeições’ não vai além do pastiche
Anna e Tom passam por maus momentos quando começam a ser vítimas do mundo que ajudaram a engendrar: a gentrificação, “nome conhecido quase exclusivamente por quem era responsável por ela”, fura sua confortável bolha. Apartamentos fechados, alugados em curta temporada, a senhorinha croata e o velhinho grego que perderam o comércio tradicional, e por aí vai. A solução, pensam, poderia estar em Lisboa, a próxima Berlim, ainda nos estágios iniciais de degeneração. Para ficar em sintonia com o universo digital dos personagens, talvez só um emoji, aquele dos olhinhos virados, dê conta do que não se passa em intermináveis 109 páginas.
É curioso lembrar que Georges Perec é um dos autores importantes para Annie Ernaux. Foi lendo As coisas que ela percebeu um caminho para o ponto de vista único de seus narradores, um aparente desengajamento, uma aparente simplicidade que permite aflorar os movimentos bem pouco plácidos de seus livros: a violência insidiosa de classe, o trauma do aborto clandestino, as paixões sem solução, um câncer. Poderíamos evitar muito aborrecimento se os livros da autora de Os anos — e também os de Édouard Louis — viessem com uma tarja: “crianças, não tentem isso em casa”. As perfeições é, aliás, a prova de que a obra de Perec e suas invenções mirabolantes mereceria a mesma advertência.
Tati Bernardi — a autora, acho — parece estar certa de que, pela via da “autoficção”, faz um retrato impiedoso das elites paulistanas — as econômicas, as intelectuais e as que unem os dois traços — ao fundir na escrita pessoas que conhece e experiências vividas. Vincenzo Latronico também está convicto de que, devidamente intermediado pela “alta literatura” de Perec, desnuda a Vila Blasélândia instalada em Berlim.
Se A boba da corte está mais para uma coleção de crônicas do que romance e As perfeições não vai além do pastiche é porque um e outro foram pensados assim mesmo, como divertimentos, passatempo — o que não é nenhum pecado. Tati Bernardi é Annie Ernaux para colorir, Vincenzo Latronico o George Perec para ligar os pontos.
Porque você leu Crítica Cultural
As vidas de Helô
Heloisa Teixeira misturou insubmissão e instituição, quebradas e ABL, poetas e pensadores em reflexão e ação múltiplas e únicas no debate cultural brasileiro
MARÇO, 2025