Teatro,

Nos palcos da vida

Há quarenta anos em cena e ativo na pandemia, o Grupo Galpão é tema de livro que dá pistas sobre a longevidade do coletivo

10set2021 | Edição #51

Em 1981, Milton Nascimento lançou Caçador de mim, um dos monumentos de sua discografia. Além da canção-título, “Nos bailes da vida”, parceria com Fernando Brant, virou quase que instantaneamente um standard de Bituca. Não sem poesia, seus versos propunham uma doutrina objetiva para a prática da arte: “Com a roupa encharcada e a alma/ Repleta de chão/ Todo artista tem de ir aonde o povo está”.

É bem possível que os cinco membros fundadores do Grupo Galpão, criado no ano seguinte, tenham cansado de escutar a composição do conterrâneo (na verdade, carioca crescido na mineira Três Pontas) na rádio Inconfidência ou em ondas vizinhas. Pois fato é que eles levaram a ferro e fogo, e desde os primeiros passos, o princípio de encenar um teatro que falasse com o público, com todos os públicos.

Esse zelo pela comunicação com a plateia é um dos refrões da espécie de fotobiografia da companhia, organizada por Eduardo Moreira, um dos jovens intrépidos a desfilar sobre pernas de pau pelas ruas de Belo Horizonte naquele ato inaugural, fortemente pautado por técnicas e narrativas de circo.

O Galpão tem como princípio encenar um teatro que fale com o público, com todos os públicos

Os próprios títulos das primeiras montagens entregam a aspiração popular: E a noiva não quer casar (1983), Ó prô cê vê na ponta do pé (1984), A comédia da esposa muda (1986) e mesmo Corra enquanto é tempo (1988), já de dramaturgia mais densa — a intriga gira em torno da disputa de um ponto de rua entre um travesti e uma família de pregadores evangélicos.

Se Bituca e Brant falavam em “alma repleta de chão”, lá ia a trupe do Galpão zanzando por praças da capital mineira. Escolas, sindicatos trabalhistas e associações de bairro logo contratariam apresentações especiais. O raio de atuação não demorou a se expandir rumo ao interior do estado, num movimento que preservava a opção pela rua como palco preferencial.

A disposição em promover “a celebração do encontro, da troca e da comunicação”, como relata Eduardo Moreira, também levou o grupo a alçar a audiência a protagonista de processos criativos. Foi dela que vieram os quase seiscentos relatos de encontros fortuitos com efeitos duradouros que serviram de matéria-prima a Pequenos milagres (2007) e também as mais de 150 narrativas do inconsciente em tempos pandêmicos que estão na base de Sonhos de uma noite com o Galpão, espetáculo on-line atualmente em cartaz.

A vox populi também pesou na escolha da farsa Till: a saga de um herói torto (2009) para suceder o mergulho naturalista de Milagres.

Dito isso, o que a fotobiografia também mostra é que o anseio da companhia por um teatro acessível nunca rimou com afrouxamento de rigor artístico ou dispensa de investigação de linguagens. “Grupo funâmbulo por vocação”, na fórmula feliz do crítico Valmir Santos, o Galpão não flutuou do popular ao erudito ou do tradicional ao contemporâneo de uma produção para outra. A fusão de registros e categorias sempre constituiu a corda bamba ela mesma. As sombrinhas dos hoje doze equilibristas penderam ora para a pesquisa mais aprofundada do humor das multidões (com a incorporação das máscaras da commedia dell’arte), ora para o banho de brasilidade (pelas mãos do excelente Eid Ribeiro, na já citada Corra… e em Álbum de família, única incursão rodriguiana até aqui).

Também houve fases em que o vento soprou na direção do minimalismo, da introspecção (“o trabalho de rua nos exigia sempre uma interpretação expandida, exteriorizada, excessivamente estilizada; era preciso conhecer e explorar outros caminhos”, anota Moreira). A infantil De olhos fechados (1983), Milagres e a dobradinha tchekhoviana formada por Tio Vânia (Aos que vierem depois de nós) e Eclipse (2011) são frutos desse desejo de interioridade.

E como não falar da centralidade da música na poética do Galpão? Diretor artístico do grupo, o autor lembra que o “vírus” da melomania contagiou os mineiros a partir do contato com coletivos italianos em um festival de teatro de rua, no Rio, em meados da década de 80.

Seguiram-se seis anos de aulas de técnica vocal e iniciação musical, até o sarau de Romeu e Julieta (1992), em que acordeão, clarinete, violão, sax, flauta e percussão embalavam a tragédia dos amantes desditados — este jornalista se pega cantarolando ainda hoje o irresistível estribilho “flor, minha flor/ flor, vem cá/ flor, minha flor/ lá-iá, lá-iá, láááá-iá”.

O sucesso estrondoso da montagem dirigida por Gabriel Villela, que projetou a companhia nacionalmente (e rendeu convites para temporadas no Globe Theatre, em Londres, reconstituição do teatro em que Shakespeare montava suas criações), por pouco não levou o “grupo das pernas de pau” ao chão. Nas palavras de Moreira, o êxito “quase se transformou numa camisa de força, numa espécie de padrão ao qual deveríamos estar sempre sujeitos”.

Ainda em meio ao turbilhão, a trupe bisou a parceria com Villela em A rua da amargura (1994), que liquidificava Paixão de Cristo, Folia de Reis e circo com grande força visual e sonora. A música (executada ao vivo pelo elenco) se tornaria parceira de cena quase inseparável dos mineiros dali em diante.

Construção coletiva

Além de descobrir (ou trazer de volta ao espírito) a vocação popular do coletivo belo-horizontino e a coleção de temas e questões formais que mobilizaram seus integrantes, quem lê o volume organizado por Moreira vai coletando pistas sobre a longevidade dessa confraria. No plano do concreto, existiu desde o início a preocupação de viabilizar o trabalho artístico enquanto ganha-pão — primeiro, por meio da venda de espetáculos para prefeituras, associações de bairro e afins; depois, com a busca ativa de patrocínio permanente.

No mesmo sentido, a aquisição de um espaço para servir de sede à companhia, em 1989, representou uma mudança de patamar em termos de logística (armazenamento de cenários, figurinos e documentos como cartazes, programas e clipping) e rotina (surgia um local fixo para reuniões e ensaios).

O ápice da produção pandêmica do grupo é a participação de Paulo José, que morreu em agosto

Já no campo da criação propriamente dita, o Galpão não naufragou nos mares de morros de sua terra. Nunca foi insular. O livro lista uma infinidade de encontros e diálogos dos atores com totens da cena brasileira (além dos já citados, Aderbal Freire-Filho, Cacá Carvalho, Luís Alberto de Abreu, Paulo José, Enrique Diaz, Paulo de Moraes, Yara de Novaes, Marcio Abreu) e estrangeira (Jerzy Grotowski, Eugenio Barba, o suíço Daniele Finzi Pasca, Jurij Alschitz). (Em uma formação tão atenta aos renovadores da arte e ávida por projeções para fora de sua zona de conforto, resta a dúvida do porquê de um contingente feminino tão baixo nas duas relações.)

Alguns desses “provocadores” externos dirigiram o grupo, outros deram oficinas ou simplesmente expuseram seu método. Todos deixaram marcas, às quais se juntaram as contribuições dos doze membros — aliás, é surpreendente perceber, ao longo da leitura, quanto (e há quanto tempo) as peças são estruturadas a partir de proposições, improvisos e esquetes de cada atriz e ator.

Outro pilar de sustentação desse edifício trintão é o trabalho meticuloso de memória empreendido pelo Galpão, com a publicação dos textos de seus espetáculos, de diários de montagem (quase sempre assinados por Moreira) e de obras mais abrangentes como a lançada agora e uma anterior, de 2010, sobre os encontros com colaboradores convidados. Há também cds com trilhas de suas criações e dvds que desafiam a efemeridade das artes do palco.

Ainda de olho naquilo que pode haver de perene em seu ofício, o grupo abriu no fim dos anos 90 o Galpão Cine Horto, que abriga, além de salas de ensaio e de espetáculos, uma programação intensa de cursos e ateliês — muitos ministrados pelo elenco da casa, que assim irradia os procedimentos e a ética de trabalho burilados ao longo de quase quarenta anos. Esses são fatos, ou seja, aquilo que foi. Mas Moreira se mostra igualmente afeito ao que poderia ter sido, ou melhor, ao poder do teatro de acessar essa utopia. O autor abre seu ensaio evocando a faculdade do palco de tornar visível o invisível, desvendar o “submerso, não dito, insondável”. No arremate, mais de sessenta páginas adiante, lá está de novo o elogio da “luz da sempre inútil poesia”, portal para o sonho e para a liberdade absoluta.

Em tempos de confinamento, tão ásperos à lírica saudada pelo escriba, o Galpão dobra a aposta. Lançou em 2020 Éramos em bando, um média-metragem sobre o esforço dos atores para se manterem ativos e juntos, até onde o cada-um-no-seu-quadrado-de-Zoom permite. Depois, vieram a experiência multimídia Como os ciganos fazem as malas, transmitida via aplicativo de mensagens, e a peça radiofônica (na verdade, mais um podcast experimental) Quer ver escuta. Até 12 de setembro, a companhia apresenta a já citada Sonhos de uma noite… Ali, encadeiam-se imagens sombrias (cemitérios, cadáveres, cabeças apartadas do corpo, homens com fuzis), delírios de evasão (o mar, a mitologia antiga, um flerte com Carlitos) e cenas insólitas (a peleja de um amante de frango para degustar a ave), num guisado dramatúrgico que aquece os saudosos de teatro, mas não sacia.

O ápice da produção pandêmica do grupo até aqui é a participação de Paulo José, que morreu em agosto deste ano, no segundo episódio de Quer ver escuta. Com fôlego comprometido por quase trinta anos de mal de Parkinson, o ator gaúcho empresta seu fiapo de voz a um poema de Alberto Pucheu. Sua leitura é cristalina de intenções e ênfases, uma aula de precisão rítmica — a despedida confirmando o talento colossal do gaúcho.

Nos versos finais, ele diz: “o que, apesar de tudo, resta a dizer,/ a dizer, apesar de tudo, o impossível/ a tornar, apesar de tudo, o possível/ sempre e a cada vez e de novo possível”.

Quem escreveu esse texto

Lucas Neves

É jornalista.

Matéria publicada na edição impressa #51 em setembro de 2021.