Você precisa tomar um sorvete

Literatura, Rebentos,

Você precisa tomar um sorvete

Mariana Salomão Carrara brinca com a permanência da infância ao narrar uma fila para comprar sorvete que dura mais de cinquenta anos

31jan2025 | Edição #90

James Matthew Barrie, autor de Peter Pan, dizia que nunca deveríamos mandar as crianças para a cama, “elas sempre acordam um dia mais velhas”. Na estreia de Mariana Salomão Carrara na literatura para as infâncias, em coautoria com o ilustrador italiano Giovanni Colaneri, em um instante o protagonista envelhece não apenas um dia, mas décadas.

O ilustrador Giovani Colaneri e a autora Mariana Salomão Carrara (Divulgação;Renato Parada/Divulgação)

No seu aniversário de cinco anos, Gabriel está vivendo um “domingo majestoso”, um daqueles dias em que a tinta da infância parece ser permanente, e não há tarefa mais importante que escolher o sorvete. De repente, a realidade se impõe na forma de uma criatura cheia de pernas intermináveis; um monstrengo imperativo que a maioria de nós vai conhecer um dia: a fila! 

Qual a relação entre uma fábrica de pijamas, um sorvete de mortadela e um dia de cinquenta anos? Com a dignidade particular da fantasia de uma criança, o personagem Gabriel incorpora o mecanismo descrito pelo escritor italiano Gianni Rodari (1920-80) para fazer essas ligações.

Rodari imaginou uma ponte para coisas aparentemente indissociáveis, uma expressão trazida da matemática para a arte: o “binômio fantástico”. Com ele, recorremos ao expediente natural das crianças, contamos com um empurrão dessa engenhoca sem freios chamada fantasia não só para aproximar palavras distantes — como macarrão e Júpiter, escrivaninha e clavícula — mas para modicar a norma da linguagem, ancorando o fantástico ao real, e vice-versa. Assim, podemos criar mundos sem pé nem cabeça. Frequentemente, os favoritos dos leitores.

Cores saborosas

Sabor paciência se completa nas imagens criadas por Colaneri, que parecem saídas do caderno de alguém com não mais de sete anos, provavelmente deixado sozinho com seu novo estojo de hidrográficas em 72 cores. As imagens e o texto verbal jogam com a expressão do tempo em diferentes espaços, entre um único domingo e os futuros inventados pelo menino. A linearidade, muitas vezes atribuída à palavra, ganha variadas bifurcações no plano visual do livro.

Enquanto espera chegar sua vez, o menino vai crescendo em uma situação insólita, que ganha ares de eternidade quando a mãe sentencia: “Olha ali o tamanho da fila! Você vai ficar aí a vida inteira”. Conforme as horas vão se transformando em anos, Gabriel tenta adivinhar, pelas cores, cada um dos sabores. Bege só poderia ser doce de leite; cor-de-rosa é de morango; já o verde sempre é de limão — ou será abacate? A infância é quando há tempo de sobra, ou “a verdadeira felicidade seria lembrar do presente”, como escreve Annie Ernaux.

Sem mais nem menos, o garoto se dá conta de que aprendeu a ler, logo completou treze anos, num pulo já entrou na faculdade e quando vê virou desenhista de pijamas — de um tipo que se pode usar em qualquer lugar, até debaixo d’água. Naquele mundaréu de gente, “passou uma era”, diz o livro, polvilhado das expressões superlativas do vocabulário infantil.

Tempo

Se no romance de Carrara Se deus me chamar não vou (Nós, 2019), o sonho da protagonista Maria Carmem é ultrapassar logo os onze anos só para não ter mais “a pior idade do universo”, dessa vez a escritora realiza esse desejo em Gabriel, que vai conhecer a glória infantil de perto: não ter que esperar um dia sequer para crescer.

Como quem observa as horas se relativizarem entre o prazer e a obrigação, a autora coloca no centro de seu interesse literário a própria passagem do tempo — cada nuance e também as consequências inevitáveis. No lugar da morte, que perpassa muitos de seus livros — a exemplo de A árvore mais sozinha do mundo (Todavia, 2024) e Não fossem as sílabas do sábado (Todavia, 2022) —, em Sabor paciência é a habilidade vital do protagonista que conduz a narrativa.

O protagonista vai conhecer a glória infantil de não ter que esperar um dia sequer para crescer

Enquanto a fila anda e o menino vai ganhando cada vez mais anos, ele logo está com mais de cinquenta e uma rotina cheia de regras que ele mesmo inventou (“mora com amigos, todos só usam pijamas”, “sem hora para almoçar ou dormir”). Uma realidade à parte de todo o resto. Não por acaso, o adulto que está à frente de Gabriel “é puro cansaço”.

Sabor paciência oferece à literatura para as infâncias sua possibilidade mais ampla, a de ser a expressão de um sentimento de mundo experimentado com a lentidão apressada dos primeiros anos.

Na história — assim como seria para todos nós, na melhor das hipóteses —, as crianças são aquelas que não se incomodam de esperar, desde que possam se ocupar de imaginar. Alguém capaz de recriar múltiplos cenários em um contexto tão linear quanto uma fila é não apenas menos propenso ao tédio, mas, talvez, mais preparado para viver — esse exercício contínuo de criação, como escreveu Rodari em Gramática da fantasia (Summus, 2003): “A mente é uma. Sua criatividade deve ser cultivada em todas as direções”.

Quem escreveu esse texto

Renata Penzani

Jornalista e pesquisadora do livro para a infância, é autora de A coisa brutamontes (Cepe).

Matéria publicada na edição impressa #90 em fevereiro de 2025. Com o título “Você precisa tomar um sorvete”

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