O tecer das histórias

Entrevista, Rebentos,

O tecer das histórias

Primeiro livro juvenil de Eva Furnari traça um épico mágico sobre a busca pelas próprias origens e o amadurecimento

19mar2025

É fácil reconhecer alguns artistas seguindo a lógica de seus traços mais característicos. Basta um leve vislumbre em retratos de rostos e pescoços femininos muito alongados e, voilà, reconhece-se um Modigliani. Figuras de nariz comprido, meio magricelas, carregadas de um humor fino e lúdico — e muitas vezes acompanhadas de uma bruxa: um clássico Eva Furnari. No mais recente lançamento, Rozaspina (Moderna), a escritora e ilustradora ítalo-brasileira dá vida a outra parte que a caracteriza tão bem: a habilidade com a literatura fantástica. Voltado para o público juvenil, suas ilustrações se tornam coadjuvantes e dão vida apenas ao universo contido nos mapas de apoio, enquanto deixa as características físicas dos personagens por conta da descrição e da imaginação do leitor.

Fruto de uma ideia que nasceu há vinte anos, o épico de Furnari acompanha a descoberta da protagonista de possuir o dom de tornar real toda criatura e objeto que borda. Lalin vai descobrindo que, embora as agulhas e as linhas sejam simples, algumas verdades sobre si mesma são mais complexas e profundas. Na busca por desvendá-las, ela encontra a sociedade mágica Rozaspina, faz amigos e vai amadurecendo a cada página.

Ainda que diferente da forma costumeiramente usada pela autora, a obra se firma como um clássico do estilo de Furnari, que mergulha nas expressões, jornadas e psicológico de seus personagens, sem deixar de lado a graça que a acompanha desde antes de Felpo Filva (Moderna, 2007), seu famoso coelho-poeta. Em entrevista para a Quatro Cinco Um, a escritora e ilustradora conversa sobre as diferenças de criar histórias para o público infantil e o juvenil, a maturidade e os rituais de passagem da infância para a vida adulta e as origens de sua literatura.

A escritora e ilustradora ítalo-brasileira Eva Furnari (Divulgação)

Afinal, o que é a Rozaspina?
Rozaspina é um lugar, uma sociedade secreta que acolhe pessoas com o dom de bordar com uma linha mágica que vem da natureza. Levei muitos anos para engendrar essa história. A primeira ideia veio há vinte anos. Nesse tempo todo fiz muitas outras coisas: escrevi mais de seis livros novos, reformulei outros quarenta e cinco. Fui escrevendo nos intervalos de outros livros infantis e o finalizei na pandemia, quando pude me dedicar com mais afinco.

De onde veio essa ideia de mais de vinte anos?
Sempre gostei de costurar e bordar. E apesar de não investir nisso de uma maneira particular, sempre tive uma ligação com as roupas e tecidos. Não sei explicar de onde isso vem. Na adolescência, não tínhamos dinheiro, então eu fazia minhas próprias roupas. Tinha uma intuição para isso e desenvolvia-as através daquelas revistas de molde. Minha mãe ficava horrorizada ao me ver com a tesoura na mão e dizia “que coragem!”.

Acho que a ideia veio daí: dessa ligação com a costura, tecido, linha, roupa. Não é com a moda em si, é diferente. E a isso, somou-se a minha imaginação. Escrevo há quarenta e cinco anos, então o meu acesso é a esse mundo imaginário da ficção fantástica. Esse é o meu quintal, você pode ver que minhas histórias não são realistas nem nada. Então, “teci” lentamente cada personagem.

Não sei se todos os escritores fazem assim, mas particularmente sinto que, mesmo que eu use essa imaginação tão inventiva, a minha construção da história tem de ser extremamente lógica. Coerência, verossimilhança, enredamento, tudo depende desse pensamento muito, muito, muito racional. É administrar a criação e as imagens dos personagens e entrelaçá-las aos sentidos. Um personagem não pode ter falado uma coisa antes e depois desmentir, certo? A não ser que mostrar a incoerência daquele ser seja o propósito.

Lalin, a protagonista de Rozaspina, está submersa em dúvidas sobre a própria origem e as dificuldades da transição para a vida adulta. Como foi pensar esse outro lado, mais realista, das narrativas infantojuvenis?
Na verdade, esse é o primeiro livro que eu escrevo que tem mais vínculo com a realidade. Inclusive, tenho filhos e netos, então vivi a infância deles e os conheci. Além da familiaridade com esse universo, talvez eu ainda tenha um lado que permaneceu infantil e juvenil. Isso está dentro dessa personagem. O que mais privilegiei na história é a trajetória emotiva dela, até mais do que a aventura e as perseguições que passa.

Depois que já tinha finalizado, li um livro do Mircea Eliade sobre sociedades matriarcais, ritos de passagem e coisas do tipo. Percebi que a Lalin também passa por um desses ritos durante uma cena na caverna. Tendo que cuidar de si, estando por conta própria, ela faz a passagem da infância e adolescência para a vida adulta.

Isso é o que acontece na psique dos jovens. E, embora não tenhamos mais esses rituais como as sociedades mais antigas, de alguma forma — bem ou mal — fazemos a passagem. Então, se fôssemos traçar uma visão psicológica dos meus personagens, dá para ver que eles são sim muito reais. Reagem e vivem os processos de abandono, questões internas conscientes ou inconscientes. A infância e a juventude também não são fases tão fáceis assim, né? A criança gosta de rir e se divertir, mas não é só isso.

Você criou mapas que ajudam o leitor a ter uma ideia do vasto universo do livro. Você pensa em expandir as histórias de Rozaspina?
Sim, eu tenho histórias no caldeirão e sigo mexendo-as. Estou terminando de organizar todo o material, os rascunhos e os processos, minhas anotações-memória sobre os caminhos e descaminhos dessa história. Por serem mais longas, ainda estou pensando se vou com ou sem ilustrações.

Para você, como funciona esse processo de ligar texto e imagem?
No meu caso, o desenho é mais importante do que as cores, texturas e etc, porque prezo a expressividade dos personagens. Gosto de marcar o humano e seus códigos de comunicação do corpo, do rosto, do sentimento. É difícil fugir de alguns códigos, mas é daí que se pode desenvolver o próprio estilo. Sigo algo da minha personalidade, que é mais voltada para o engraçado — o que é doido, pois nunca consegui explicar o porquê um desenho tem graça. Penso que, se é engraçado para mim, deve ser engraçado para a criança também. Se me divertir, meu leitor também irá.

A linguagem visual é muito diferente da linguagem escrita. Ela é o não dito, ela é a apreensão rápida. O escrito vai depender de entendimento, como juntar as letrinhas e obter significados. Vai para um lugar do cérebro que eu não sei, mas vira emoção. Então, é muito mais difícil para mim escrever. Esse foi um dos desafios desse livro: pensar o que fazer para passar essa história da minha cabeça, cheia de imagens, para o texto; como exprimir a beleza e a sutileza de uma floresta da história; como dizer que ela era sagrada. Usar palavras para contar imagens é um desafio quase impossível. Mas eu tentei.

Quando foi o seu pontapé para começar a desenhar? E esse processo veio junto ao de escrever e criar histórias?
Sempre comecei pelo desenho. De criança, desenhava todos os dias. Meus cadernos de escola tinham mais desenhos do que tarefas. Aprendi sozinha. Na verdade, acho que no Brasil muita gente é autodidata. Não ficamos muito parados, vamos lá, e até fazemos na marra. Então, eu desenhei todos os dias da minha vida. Vim de uma família de físicos, químicos e engenheiros; fui fazer física também. Percebi que estava errada, então fui para a arquitetura que ficava no meio do caminho.

Era artista plástica, escultora, pintora, desenhista, professora no Museu Lasar Segall. Mas aí nasceu minha filha e eu comecei a me debruçar sobre os livros infantis e descobri que tinha muita afinidade, mas nem tanto a prática da escrita. Por isso, durante os meus dez primeiros anos como ilustradora, meus livros não tinham texto. Mas fui me aventurando: de textos mais curtinhos, às rimas… Até o dia que apareceu uma história mais complexa, A bruxa Zelda e os 80 docinhos (Moderna, 1996), que não dava para ser contada só com desenhos. Me vi obrigada a escrever e, ao longo dos anos, fui desenvolvendo a escrita.

Em uma entrevista que deu há um tempo, você diz ter aprendido a ler com o Andersen e não com o Monteiro Lobato, por sua família ser estrangeira. Como foi descobrir a literatura infantojuvenil brasileira?
Só fui ler Monteiro Lobato depois de adulta, para os meus filhos, mas aprecio o grande contador de histórias que foi. Mas não dá para ignorar toda a questão complexa ao redor, da qual ainda não sabemos lidar exatamente.

O restante da história é longo [risos]. Minha família já não era uma família tradicional. Minha mãe era austríaca e meu pai italiano e eles moraram por dez anos no continente africano, depois voltaram para a Itália e, posteriormente, vieram para o Brasil. Como meu pai morreu quando eu era criança, minha formação como leitora se tornou mais germânica do que italiana, e acredito que é daí que vêm as bruxas e esses personagens meio doidos [risos].

Foi só depois que descobri que meu desenho segue uma estética meio germânica, com aquelas características da personagem da senhora magricela, comum nos livros austríacos. Meus desenhos são fortemente parecidos com os autores desses países, mas eu me sinto totalmente brasileira. Acho uma sorte grande ter vindo para o Brasil quando tinha dois anos e meio de idade; penso que provavelmente não seria o que sou se tivesse ficado na Itália. Eu tinha oito graus e meio de hipermetropia, então lia mais ou menos, mas conseguia ver as imagens direitinho. Só fui usar óculos com dezoito anos, quando prestei o vestibular, o que quer dizer que não fui uma grande leitora, mas fui uma grande observadora de imagens. Mas veja só como é a nossa trajetória e os caminhos que nos definem, né? [risos].

Nesse caminho todo, eu tive muitos vínculos com os livros que a minha mãe tinha trazido da Europa, com ilustrações inacreditavelmente lindas. Me enchiam os olhos, viraram minha alma durante muito tempo. Mas eu fui abrasileirando tudo, porque me formei aqui. Ainda assim, acho que tem uma questão única em ter uma origem diferente e misturada, como as coisas que a gente vê, ouve e vive na infância. Essas coisas nos marcam. Como as crianças que leem o mesmo livro duzentas vezes e ficam ligadas em tudo sobre determinado personagem. Coisas assim marcam o universo de cada um e é ótimo entender que cada um tem um universo e um planeta só seu. Como quando me dizem que eu tenho um estilo só meu, que é fácil reconhecer um desenho Eva Furnari. O que quero dizer é que, muitas vezes, ao escolher uma literatura ou um livro, aquilo entra em sintonia com o seu planeta pessoal. Para uns funciona o realismo, para mim é a fantasia. Seu encanto e sintonia são muito míticos.

Quem escreveu esse texto

Jaqueline Silva

É estudante de Jornalismo na ECA-USP e assistente editorial na Quatro Cinco Um.

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