Crescer na boca de um tubarão

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Crescer na boca de um tubarão

Queniano Patrick Ochieng conta a vida de pessoas refugiadas dentro do próprio país

01out2024 • Atualizado em: 30set2024 | Edição #86 out
Ilustração de Arielle Martins (Divulgação)

“Ninguém deixa a própria casa/ a menos que seu lar/ seja a boca de um tubarão”. Os versos são da poeta de origem somali Warsan Shire e estão na epígrafe de Deslocados, de Patrick Ochieng, que chega ao Brasil com tradução da poeta Nina Rizzi. Autor de contos e romances, o queniano figurou entre os finalistas do Golden Baobab 2010, prêmio anual voltado ao reconhecimento de escritores africanos de literatura infantojuvenil.

Para a maioria de nós, que nunca viu de perto um tubarão, resta lembrar algumas características do bicho. Tem dentes afiados e força descomunal. Enfurecido, é capaz de matar. Então a casa de alguém pode ser assim? Quem conta essa história é Kimathi (pode chamá-lo de Kim). Naquela fase da vida em que frequentemente desconhecemos o mundo e nós mesmos, a passagem da infância para a adolescência, Kim passa a ser um deslocado interno. De duas maneiras diferentes, sua experiência de crescimento é atravessada pelo despertencimento.

“Deslocado interno” é um termo utilizado por organizações de direitos humanos para nomear indivíduos ou grupos de pessoas em situação de refúgio dentro de seu país. Enquanto os refugiados atravessam fronteiras internacionais para buscar segurança durante guerras, perseguições ou desastres naturais, os deslocados internos migram dentro do próprio território de origem. São pessoas que permanecem sob o condicionamento legal do mesmo Estado que provocou seu deslocamento. “Hoje, há mais de 60 milhões de deslocados internos, vivendo entre a incerteza do passado (que os assombra diariamente) e a incerteza do futuro”, conta o professor e advogado Gabriel Bernardo da Silva, membro do Direito Internacional Humanitário da Cruz Vermelha italiana.

A trama mobiliza o que é buscar um lar depois de ser privado do seu, de viver uma batalha dentro de outras

Deslocados parece esperar do leitor o passo firme para acompanhar uma narrativa de fôlego. Ao longo de 192 páginas divididas em 37 capítulos curtos, Kim conta, em primeira pessoa, o que está se passando na sua vida do lado de fora (um Quênia devastado por conflitos étnicos), enquanto tenta nomear o que se passa do lado de dentro (um coração perturbado pelo tumulto de não entender o mundo).

Na primeira cena, Kim relata o motivo da fuga da família. Durante um confronto de motivação étnica e política, seu pai é atacado. O menino, a irmã Ngina e a mãe são obrigados a deixar seu corpo ainda com vida para trás, e a correr para o mais longe possível. “Corremos na lama. Corremos morro acima. Fugimos de nossa casa”. Nunca mais verão o pai. Vão morar em um acampamento para refugiados.

Kim é um menino generoso, disposto a perceber o que acontece ao redor. Gosta de mingau, maçã, batata doce. Adora jogar xadrez, mesmo sem saber responder como a rainha se move mais rápido que os peões. Até ser obrigado a deixar uma vida para trás, seu cotidiano não era diferente do de outros meninos da comunidade de Daraja, na cidade de Eldoret. O ano era 2007, e tudo mudou.

Contexto

O enredo percorre esse ano-chave na história do Quênia, quando o resultado das eleições presidenciais incendiou grupos opositores, dando início a ondas de violência sistemática contra civis e desencadeando uma grave crise humanitária e migratória. Na capital Nairóbi e em Eldoret, dezenas de pessoas chegaram a ser queimadas vivas. A Organização das Nações Unidas e a União Africana somaram forças junto a organizações internacionais pela pacificação do país. No entanto, o aumento de impostos e do custo de vida durante a pandemia de Covid-19 agravaram a chamada Crise no Quênia.

O contexto importa para a leitura de Deslocados. A trama mobiliza o significado de buscar um lar depois de ser privado do seu, de viver uma batalha dentro de outras: algumas coletivas e aparentes, outras tão subjetivas e invisíveis que mal fariam um ruído perceptível, não fosse a coragem de um garoto ao decidir narrar a si próprio.

Apesar de retratar crianças que têm pesadelos como consequência das decisões dos adultos, a obra não se resume às circunstâncias de seu tema central. As infâncias plurais que ali habitam estão em pequenos gestos brincantes que tentam afugentar o horror; nos sonhos lembrados ao acordar; na chuva que Ngina rabisca com giz de cera para elaborar o luto; nos dedos da mãe entrelaçando o cabelo da filha para aplacar o silêncio.

Ochieng presenteia a literatura juvenil com um protagonista que celebra a sensibilidade com inteligência e não espelha condutas do mundo adulto — a violência, a ganância, a negligência. Ao citar o defensor de direitos humanos dom Helder Câmara, o prefácio descreve o valor de uma figura como essa em meio à guerra: “Há criaturas como a cana: mesmo postas na moenda, esmagadas de todo, reduzidas a bagaço, só sabem dar doçura.”

Quem escreveu esse texto

Renata Penzani

Jornalista e pesquisadora do livro para a infância, é autora de A coisa brutamontes (Cepe).

Matéria publicada na edição impressa #86 out em outubro de 2024. Com o título “Crescer na boca de um tubarão”

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