Quadrinhos,

Petrônio encontra Shakespeare e Fellini

Satíricon, o romance que o autor romano publicou no século i, é adaptado pelo quadrinista francês Blutch

01abr2020 | Edição #32 abr.2020

Desconhecido e até então inédito no Brasil, o quadrinista francês Blutch (pseudônimo de Christian Hincker) é considerado em seu país uma espécie de herói de uma nova geração de artistas. Entre outras alcunhas, é chamado de “Mozart dos quadrinhos”. Só por isso, a leitura de Péplum, um de seus trabalhos mais elogiados, que chega agora às livrarias brasileiras, já seria obrigatória para os amantes da nona arte. Mas o quadrinho tem outros atributos, como fartas doses de surrealismo. É preciso, no entanto, reconhecer que não se trata de uma leitura fácil.

Péplum é um projeto audacioso, quase delirante: transpõe para os quadrinhos o antigo romance Satíricon, do poeta romano Petrônio, escrito por volta do ano 60 da era cristã. Fazê-lo é como remontar um quebra-cabeça cheio de peças perdidas — afinal, o que restou do texto são fragmentos. E Blutch foi longe na livre adaptação da obra. Na sua versão, o tempo em que a história se passa, por exemplo, é outro. Diferentemente do Satíricon original, que acontece nos tempos do imperador Nero, Péplum se situa cerca de cem anos antes, durante a crise de Roma, no instante da morte do ditador Júlio César, apunhalado dezenas de vezes em um assassinato coletivo tramado pelo Senado romano.

Já no primeiro capítulo, referências se fundem. A primeira parte vem da peça Júlio César, de Shakespeare. É dela que surge um dos personagens centrais da trama de Blutch, o exilado Públio Cimbro, que toma o lugar dos protagonistas do texto original de Satíricon, o narrador Encólpio, seu amante Ascilto e o servo, o jovem Gitão, que se envolve com ambos causando ciúme e muita encrenca. A hq parte do momento em que o senador romano Tílio Cimbro solicita o resgate de seu irmão, Públio, do exílio — na realidade só um pretexto para assassinar o ditador, tal como na peça de Shakespeare.

A saga do jovem Públio começa junto com a de um bando de ladrões e exilados, quando descobrem uma mulher em uma caverna — pela qual, aliás, ele se apaixona —, presa em um bloco de gelo. A personagem feminina é inspirada em um balé da década de 1950 do coreógrafo francês Roland Petit. Mas seu rosto é semelhante ao da Dama de Auxerre, uma pequena estátua grega do Museu de Louvre. O quadrinista francês bebeu ainda em muitas outras fontes, sobretudo do cinema: filmes como Othello e Falstaff, do diretor norte-americano Orson Welles, e Gaviões e Passarinhos e Medeia, do italiano Pier Paolo Pasolini, foram inspirações-chave, segundo o autor.

A referência mais significativa Blutch diz ter vindo da adaptação do romance de Petrônio por Fellini, o longa Satyricon, que, segundo o autor, traduz o lado sombrio, bárbaro e colorido do romance: “Eu nem sei se comecei com o livro de Petrônio ou com o filme de Fellini”, diz. Apaixonado por quadrinhos e fotonovelas, o cineasta italiano, que completaria cem anos em 2020, em sua versão cheia de liberdade e experimentações de Satíricon, explorou uma narrativa visual em quadros, inspirada no universo das HQs.

A referência mais forte vem de Fellini, que traduz o lado sombrio, bárbaro e colorido de ‘Satíricon’

Sobre tantas influências, o autor já admitiu em entrevistas que meteu a mão em tudo o que encontrou pelo caminho de Péplum sem cerimônias. “Quando acho algo que posso usar, eu pego”, declarou. Vale explicar que péplum é o nome de uma vestimenta leve usada na antiga Roma e se tornou também uma subcategoria cinematográfica que fez muito sucesso nos eua nas décadas de 1950 e 60, também conhecida como “espada e sandália”, com filmes inspirados em temas bíblicos e mitológicos. 

Um difícil começo

Além de não ser simples, Péplum não teve vida fácil. Os primeiros capítulos foram publicadas na mítica e finada revista de quadrinhos (À Suivre) em 1996. Até aí, tudo certo: a publicação francesa ajudou a moldar o quadrinho europeu contemporâneo, e ser lançado nela significava estar entre os melhores. Os artistas mais badalados da Europa publicavam na revista, como Manara, Moebius, Jacques Tardi e Hugo Pratt. Mas, por sua complexidade e tamanho, Péplum entrou na mira dos editores da prestigiada publicação, que pressionaram o artista para que enxugasse a história e chegaram a excluir páginas sem diálogos para tornar o entendimento mais fácil. 

Blutch não era ainda uma celebridade, embora seu trabalho começasse a decolar e se destacar. Publicava histórias de humor desde o início da década de 1990 na revista francesa Fluide Glacial, e seu estilo era comparado ao do cultuado cineasta surrealista Luis Buñuel. Ainda assim, a chefia da revista decidiu abortar o projeto de publicar Péplum em livro. Foi um duro golpe para Blutch, que logo correu para tentar lançar sua obra por outras vias. Porém, viu seu projeto recusado várias vezes pelas grandes editoras. Ser deprezado pela maior revista de quadrinhos da França definitivamente não causou uma boa impressão em outras publicações.   

O trabalho ambicioso de Blutch acabou sendo lançado integralmente em 1997, pela nanica Cornelius, de seu amigo Jean-Louis Gauthey. A pequena editora de quadrinhos, após o sucesso de Péplum, tornou-se uma das mais importantes da França. A HQ também foi um marco na carreira de Blutch, que logo passou a colaborar como ilustrador para importantes publicações, como o jornal francês Libération e a badalada revista norte-americana The New Yorker.

Apesar de as evidências saltarem aos olhos nas páginas de Péplum, Blutch nega ser um autor hermético. “O que faço é bem simples, absolutamente não é intelectual”, contou, durante o lançamento da hq, dizendo que em suas histórias busca priorizar a ação. “Procurei abandonar esse lado mais psicológico, literário.” No lugar, optou pela ambiguidade. À época, disse ainda estar caminhando para uma direção mais musical. De fato, apesar do silêncio em muitas de suas páginas, não faltam movimento e ação em Péplum. Há piratas, feiticeiros, batalhas sanguinárias, tragédias, romances e traições. As cenas de sexo, porém, como era de se esperar em uma adaptação de Satíricon, não aparecem, com exceção de alguns poucos momentos, mas sem carga de erotismo. Mas tudo bem. A falta de libido não faz sua HQ perder a luxúria. 

Quem escreveu esse texto

Carlos Minuano

Jornalista, escreveu Raul Seixas por trás das canções (BestSeller). 

Matéria publicada na edição impressa #32 abr.2020 em março de 2020.