O ‘Ulysses’ dos quadrinhos

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O ‘Ulysses’ dos quadrinhos

Muito conhecido e pouco lido como o clássico de Joyce, As aventuras de Nhô Quim ganha edição que celebra seu valor como documento histórico

13nov2024 • Atualizado em: 29nov2024 | Edição #88 dez
Nhô Quim visita um alfaiate, em cena da HQ (Divulgação)

Antes de tudo, é preciso reconhecer o trabalho da editora Chão. As aventuras de Nhô Quim tem um lugar importantíssimo no entendimento da imprensa ilustrada e da sociedade brasileira da segunda metade do século 19. Republicações desse tipo são sempre bem-vindas. Essa tal de “imprensa ilustrada” pode parecer um termo estranho ao leitor do século 21. Mas para o de dois séculos atrás foi uma novidade importante.

O desenvolvimento técnico e científico da Segunda Revolução Industrial trouxe para a imprensa um elemento novo: imagens, agora reproduzidas por meio da litografia e inseridas em meio aos textos dos jornais. A partir da década de 1830, aproximadamente, surgem na Europa jornais especializados ou ilustrados como os franceses La Caricature (1830-43) e Le Charivari (1832-1937) e o inglês Punch, or the London Charivari (1841-2002).

Seu assunto principal era uma crítica política bem-humorada, ácida e abrangente: ia dos altos governantes até os serviços municipais. Além dessas cargas (charges) contra os governos e a igreja, havia comentários sobre a vida em sociedade, a moralidade da época e eventos artísticos, principalmente ópera e teatro. 

Desenhistas como Rodolphe Töpffer (1799-1846) e Honoré Daumier (1808-79) criaram uma linguagem própria que, por meio do desenho litográfico, animava caricaturas, charges e aquilo que seria o avô das histórias em quadrinhos: uma arte sequencial, uma história contada pela interação de imagem e texto e que aparecia nos jornais ilustrados com uma periodicidade estabelecida, da mesma forma que eram publicados os romances na imprensa da época.

Os jornais ilustrados começam a ser publicados no Brasil a partir da década de 1840. Grosso modo, eram jornais em pequeno formato, de periodicidade semanal, com uma média de oito a doze páginas e caros. O número avulso custava quinhentos réis, três vezes o preço do exemplar dos diários da época. Eram caros pelo tempo necessário para fazer os desenhos — uma semana de labuta dura correndo contra o relógio — e pelo trabalho de impressão, que combinava tipografia e ilustrações litográficas. Numa época em que a maior parte da população do Rio de Janeiro era de pessoas escravizadas e, entre os livres, uma parcela diminuta sabia ler, a imprensa ilustrada era evidentemente voltada a um público de elite e progressista.

Nhô Quim é o retrato impiedoso da nossa elite na opinião de um jovem artista italiano, que tinha 26 anos

Eram todos “jornais de autor”, editados principalmente pela figura do artista empresário, como o italiano Angelo Agostini (1843-1910) e o alemão Henrique Fleiuss (1823-82), que chegaram ao Brasil em 1858 ou 1859, ambos já tendo realizado seus estudos artísticos na Europa. Autor prolífico, Agostini havia participado ou editado os jornais ilustrados Diabo Coxo, Cabrião, O Mosquito, A Vida Fluminense, Revista Illustrada e Don Quixote; os dois primeiros em São Paulo, os demais no Rio de Janeiro. Henrique Fleiuss, por sua vez, era responsável pela Semana Illustrada, e competidor direto de Agostini. Esses artistas e seus colaboradores influenciaram profundamente a formação da caricatura, da charge política e de costumes, bem como o desenho de ilustração e a história em quadrinhos no Brasil.

Agostini chegou ao Brasil com dezesseis anos, filho da conhecida cantora de ópera italiana Raquel Agostini, que teve como segundo marido o português Antônio de Almeida. Padrasto e enteado vieram a ter uma longa carreira ligada à imprensa, tendo se tornado sócios em A Vida Fluminense, em 1868. O ambiente da boemia e da imprensa não eram estranhos a Agostini. Progressista, apesar de monarquista, teve como editor o abolicionista Luiz Gama quando ilustrava o Diabo Coxo e sempre apresentou uma visão crítica da escravidão.

Retrato

As aventuras de Nhô Quim, ou impressões de uma viagem à Corte foi publicado em catorze capítulos de 1869 a 1872 em A Vida Fluminense. “Romance ilustrado”, como é chamado por Angelo Agostini, é a história de um jovem adulto, perfeito representante das oligarquias rurais do interior do Brasil, no caso Minas Gerais, em contato com a sociedade urbana da corte. É também um retrato do Brasil de então, uma sociedade com um governo monárquico e em que a maioria da população ainda vivia no campo, onde estava a base da economia de exportação de gêneros primários, a grande propriedade e a exploração intensiva do trabalho de pessoas escravizadas.

Mandado pelo pai à corte para evitar o casamento do filho com uma pessoa de condição econômica modesta, Nhô Quim é uma espécie de anti-herói. Embora marcado por um caiporismo invencível, sua não adaptação ao ambiente urbano não desperta nenhuma empatia no leitor. Ao contrário, como um flâneur do mal passeando pelo Rio de Janeiro cosmopolita, ele se mostra ignorante, preguiçoso, insensível, irascível, um bruto. Além disso, é violento, assediador, um homem mau. 

É o retrato impiedoso da nossa elite na opinião do jovem artista italiano, que tinha 26 anos então. Alguns trechos são memoráveis negativamente: quando, por exemplo, um hospedeiro de Nhô Quim e interessado no seu dinheiro manda uma mulher escravizada servir água ao hóspede. Nhô Quim, vendo-se a sós com ela, lembra-se da fazenda e inicia um assédio (ou coisa pior). O autor, com uma ironia amarga, descreve essa aproximação como sendo feita “à moda da roça”. O campo, território do latifúndio e do atraso, é um lugar onde essas práticas são corriqueiras. A cidade, por outro lado, é moderna e corrupta. Surpreendendo Nhô Quim em pleno ato de assédio, o dono da casa propõe coisa melhor: irem juntos ao Cassino, que entre outras coisas oferecia serviços de prostituição de “francesas”.

Ao contrário de Eça de Queirós, que em A cidade e as serras (1895) mostra a futilidade e o vazio da vida em Paris em oposição à verdade encontrada na vida rural portuguesa, Agostini vê no campo a marca da escravidão. No campo, como queriam os realistas românticos, está a verdade, a pátria na sua essência. Para o autor, essa “pátria” não está em lugar nenhum.

Agostini é adepto daquilo que disse o desenhista Jaguar: “Não existe humor a favor”. É ácido tanto em relação aos habitantes do campo como aos da cidade. O Rio de Janeiro retratado por ele em Nhô Quim é como uma peça de teatro na qual, numa sequência ininterrupta de gags, aparecem advogados, personagens do Cassino, modistas, cantoras de ópera e prostitutas, dândis, policiais corruptos, vendedores de rua, políticos, vigaristas disfarçados de cidadãos de bem, flâneurs e assaltantes. Sua proximidade com o teatro produz um quadrinho que se parece com uma cena armada num palco.

Essa descrição da corte pelos olhos de Nhô Quim funciona como uma espécie de etnografia de costumes. Informa não só sobre a sociedade de 1869 como também mostra as críticas que se faziam na época aos costumes dos brasileiros por meio de um “repórter do lápis”, como Agostini gostava de se referir a si mesmo.

Mito de origem

Além de documento histórico, As aventuras de Nhô Quim virou parte do mito de origem do quadrinho nacional. Se você perguntar ao Google qual a primeira história em quadrinhos produzida no Brasil, a resposta invariável é Nhô Quim. Muitos defendem que a obra representa um marco mundial no desenvolvimento da linguagem das HQs ou mesmo que o gênero teria se originado no Brasil. Impossível, pois a arte sequencial já existia antes de Angelo Agostini nascer. A discussão em torno de questões meio xenofóbicas afasta o entendimento da obra como documento histórico perfeitamente inserido na tradição da imprensa ilustrada da segunda metade do século 19 no Brasil, América do Sul, Europa e Estados Unidos.

Ocorre com As aventuras de Nhô Quim aquilo que sempre se diz do Ulysses de James Joyce: muito mencionado e pouco lido pelas dificuldades que traz. Nhô Quim era uma espécie de Ulysses da história em quadrinhos, da ilustração e da imprensa ilustrada. Todos sabiam de sua existência ou tinham lido trechos; poucos o conheciam na sua totalidade. A partir de sua republicação em 2005 e depois em 2013 pela editora do Senado Federal, e com esta nova edição, está preenchida a lacuna. 

O Rio de Janeiro retratado é como um teatro, no qual aparecem cidadãos de bem, flâneurs e assaltantes

Em relação às edições anteriores, a atual oferece soluções gráficas úteis: nova apresentação do texto, ampliação dos originais e ao mesmo tempo o cuidado em trazer uma edição fac-símile. Traz ainda um útil mapa do centro do Rio de Janeiro em 1869, onde estão assinaladas as andanças de nosso anti-herói, além de um minucioso e abrangente estudo sobre a obra e seu tempo a cargo dos organizadores, também pesquisadores do assunto. Uma publicação antológica que tem que estar na estante de historiadores, quadrinistas, boêmios, pesquisadores da imprensa, do Brasil imperial e de gente que simplesmente gosta de rir.

Quem escreveu esse texto

André Toral

Publicou A alma que caiu do corpo (Veneta)

Matéria publicada na edição impressa #88 dez em dezembro de 2024.