Divulgação Científica,
O jardineiro fiel
Michael Pollan mergulha no cultivo de plantas ilícitas e reflete sobre a guerra contra algumas drogas
01abr2023 | Edição #68O que o ópio, a cafeína e a mescalina têm em comum? Todos derivam de plantas psicoativas que alteram nosso estado de consciência. Porém, dois podem levar à prisão e são considerados “ameaças às normas sociais e instituições”, segundo Michael Pollan em Sob efeito de plantas, em que relata experimentos com as três substâncias. O jornalista descreve experiências com chá de ópio e com mescalina, mas, ao escrever sobre a cafeína, decide parar de tomar café e se vê paralisado por uma tenebrosa crise de abstinência. “Como esperar escrever algo quando é impossível se concentrar?”, desabafa. O problema dialoga com perguntas que atravessam todo o livro, como a dúvida sobre o que torna uma droga socialmente aceita.
“Uma droga ilícita é aquela que o governo decide que é ilícita”, conclui. Entretanto, Pollan argumenta que o café e o chá são aceitos porque têm valor para o capitalismo; já os compostos psicodélicos, como a mescalina (princípio ativo dos cactos peiote e wachuma), representam ameaças aos interesses de quem está no poder. Para embasar sua tese, o autor se lançou em uma investigação pessoal arriscada, que flertou com a ilegalidade.
Apontado como uma das cem pessoas mais influentes do mundo pela revista Time em 2020, o professor de jornalismo da Universidade da Califórnia em Berkeley faz por merecer. Sob efeito de plantas é uma aula de jornalismo gonzo. No livro, o autor relata dias de paranoia ao cultivar papoula em seu jardim durante o ápice da campanha norte-americana de guerra às drogas, no fim dos anos 90, e revela detalhes do pesadelo que enfrentou com a abstinência do café e de suas tentativas frustradas de participar de uma legítima cerimônia indígena de peiote.
Apesar de fazê-lo em prosa simples e direta, Pollan não se esquiva de aprofundar seu relato com detalhes preciosos e uma minuciosa apuração. Cada história é contada a partir de múltiplas perspectivas: histórica, antropológica, botânica e pessoal. “Em todos os casos estive pessoalmente envolvido — não sei como escrever sobre as sensações, e os significados, de alterar o estado de consciência sem fazer experimentos pessoais.”
A ideia de produzir a mais antiga droga psicoativa do planeta no próprio jardim fascinou o autor
A primeira de três partes do livro concentra boa parte de uma reflexão crítica sobre a guerra norte-americana contra as drogas. O texto é a versão na íntegra de um artigo publicado com cortes em 1997 na Harper’s Magazine. “Depois de consultar vários advogados, concluí que havia quatro ou cinco páginas cruciais da narrativa que não poderia publicar sem correr o risco de ser preso”, conta o autor. Tudo começou quando o editor da revista lhe enviou um livro, lançado por uma editora independente, com um título bastante intrigante: Opium for the Masses (Ópio para as massas), de Jim Hogshire, que ensina a cultivar ópio a partir de sementes obtidas legalmente e com instruções detalhadas de horticultura.
A ideia de plantar papoulas e produzir a mais antiga droga psicoativa do planeta no próprio jardim fascinou o autor — que, vale destacar, é um jardineiro de mão cheia. O jornalista embarcou na aventura.
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Mas, na época em que trabalhou no artigo, e em seu jardim ilegal, em meados dos anos 90, decisões da Suprema Corte deram ao governo superpoderes como o de confiscar propriedades — casas, carros, terrenos — de envolvidos em crimes de drogas, mesmo sem condenação ou indiciamento. “Essa erosão das liberdades civis foi um efeito secundário da guerra contra as drogas ou seu objetivo?”, indaga.
Abstinência
Um agonizante Pollan surge na segunda parte do livro, em um extenso e profundo artigo sobre cafeína, no qual ele revela ter quase desistido de concluir a obra devido à abstinência experimentada ao parar de tomar café. A ideia surgiu depois de entrevistar especialistas que sugeriram não ser possível entender o papel e o poder da cafeína na rotina sem se abster dela. O parecer mais contundente foi o de Roland Griffiths, um dos responsáveis pela inclusão do diagnóstico de “abstinência de cafeína” no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, “a bíblia dos diagnósticos psiquiátricos”, segundo Pollan.
Em meio ao drama pessoal, Pollan revela que se trata da droga mais consumida no mundo: 90% dos seres humanos ingerem cafeína com regularidade. Apesar disso, são raros os que entendem o hábito como um consumo de droga, e menos ainda os que percebem o uso diário como um vício. O jornalista descreve ter sentido todos os sintomas previstos pelos pesquisadores, como dor de cabeça, fadiga e uma paralisante dificuldade de concentração. “O que jamais me ocorreu ao começar o experimento é que, ao abandonar a cafeína, estaria minando minha capacidade de contar a história da cafeína.”
Na última parte do livro, o escritor fala sobre a mescalina, tema que lhe é familiar. Seu livro Como mudar sua mente, de 2018 (adaptado para uma série homônima pelo Netflix), tornou-se a principal vitrine da chamada renascença psicodélica, e, em 2020, ele ajudou a fundar o Center for the Science of Psychedelics na Universidade da Califórnia em Berkeley. A quarentena durante a pandemia de Covid-19, no entanto, impossibilitou que ele participasse de um ritual de ingestão do peiote, “um sacramento precioso na Igreja Nativa Americana, religião de vários povos que surgiu na década de 1880, quando a civilização indígena na América do Norte estava à beira da aniquilação”. Ainda assim, o novo livro traz uma apresentação extensa e aprofundada da mescalina.
Pollan conta a longa e tortuosa história da luta centenária dos indígenas norte-americanos pelo direito ao culto com a mescalina e de como tudo se complicou a partir da popularização da substância — a primeira a aparecer em clássicos da literatura ocidental, como As portas da percepção (1954), de Aldous Huxley, e A erva do diabo (1968), de Carlos Castañeda. O recente interesse de cientistas soa para os indígenas como uma nova ameaça.
Um dos pontos altos do livro é justamente a perspectiva indígena sobre o uso de psicodélicos. “Os ocidentais […] tendem a colocar remédios e religião em caixas diferentes, mas para os nativos norte-americanos (assim como para muitas culturas tradicionais) a religião tem a ver, sobretudo, com cura.” Embora não como planejado, Pollan conseguiu experimentar a mescalina sintética e até participou de uma cerimônia improvisada, e conclui, sobre as plantas: “São professores profundos do óbvio. Mas, às vezes, é exatamente dessas lições que precisamos”.
Matéria publicada na edição impressa #68 em março de 2023.
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