Psicologia,

Freud explica, Kafka complica

Em 'Sobre desistir', Adam Phillips encara novas manifestações do mal-estar da civilização com duas pedras na mão: psicanálise e literatura

01jul2024 - 11h15 • 01jul2024 - 11h50 | Edição #83
O psicanalista e escritor Adam Phillips (Divulgação)

Não é exatamente um livro Sobre desistir — apesar do título.

São sete ensaios, mais ou menos conectados entre si, escritos a partir de uma leitura bastante ampla do título original em inglês e suas variações. On Giving Up: abrir mão, renunciar, deixar, abandonar, ceder, parar e, claro, desistir. De certo modo, variações sobre o “não”.

Assim, o psicanalista britânico Adam Phillips atravessa temas como teimosia (“Sobre desistir”), fascismo (“Morto ou vivo”), desejo (“Sobre não querer”), rejeição (“Sobre ser excluído”), curiosidade (“Sobre não acreditar em nada”), censura (“Os prazeres da censura”) e luto (“Sobre a perda”).

E não é estritamente um livro de psicanálise — apesar do autor.

Embora “self” e Complexo de Édipo pipoquem aqui e ali, a prosa de Phillips desliza muito além de seu ofício. Ele até gosta de se colocar à margem das igrejinhas do divã: “Não sei nada do establishment psicanalítico”, disse numa entrevista ao podcast da revista The Spectator.

De fato, primeiro se graduou em letras em Oxford. Mas, em seguida, fez sua formação em psicanálise com Masud Khan, figura ligada a Anna Freud e Donald Winnicott. Há vinte anos, é editor-chefe das traduções de Sigmund Freud na editora Penguin. Bastante establishment.

*

Phillips tem método. Em geral começa se debruçando sobre um desses consensos frequentemente confundidos com verdades — como, para ficar no texto que batiza o livro, a platitude de que desistir é fracassar. “A desistência costuma ser vista como um fracasso, em vez de uma maneira de obter sucesso em outra coisa.”

Então, parágrafo após parágrafo, tritura essas ideias petrificadas. Porém, em vez de avançar rumo a uma nova certeza, supostamente revista e ampliada, prefere elaborar dúvidas melhores.

Vale a pena se perguntar: a quem acreditamos que devemos justificativas quando desistimos ou quando decidimos resolutamente não desistir? 

Contra uma resposta simples, elegante e completamente errada para um problema complexo, ele oferece pontos de interrogação que, como postes de luz, iluminam cantos obscuros do assunto.

Por que alguém se interessa por ter ou não vivido? O interesse na vitalidade é um interesse em quê? O que faz essa palavra entrar em jogo? De onde veio a necessidade de sabermos se estamos vivos ou não? E quais podem ser as consequências desse conhecimento, se chegarmos a possuí-lo? Pragmaticamente, em que sentido a vitalidade e o conhecimento de estar vivo e ter vivido nos leva a ter a vida que queremos?

Então, ele para de repente, como quem levanta da poltrona e encerra uma sessão de terapia dizendo “até semana que vem”. O leitor sai do capítulo remoendo tudo aquilo na cabeça.

*

A experiência clínica de Phillips, escutando pacientes há quarenta anos, ajuda a definir seus objetos de estudo. Mesmo sem trazer diretamente casos de consultório para suas reflexões, é fácil escutar o eco de queixas de divã inspirando os temas urgentes do livro.

Phillips está sempre buscando identificar e estudar as novas manifestações do mal-estar na civilização. Encara cada uma delas com duas pedras na mão: psicanálise e literatura.

Com o método psicanalítico e a liberdade artística, Phillips é um agente duplo na investigação da vida como ela é

O índice onomástico é revelador. Sigmund Freud, Jacques Lacan, Donald Winnicott e Christopher Bollas merecem praticamente a mesma quantidade de menções que Franz Kafka, John Milton, Thomas Mann e Robert Musil. Freud explica, Kafka complica e vice-versa.

*

A citação recorrente de Kafka nesses ensaios me levou de volta a outro estudioso da obra do tcheco, George Steiner. Seu livro Linguagem e silêncio é um pouco doppelgänger deste Sobre desistir.

Se aqui a desistência se manifesta em escolhas concretas entre o que fazer e o que deixar de fazer, lá o embate é entre o que falar e o que calar. Uma investigação sobre a crise da palavra em que Kafka é um dos protagonistas — não só pela voz baixa e áspera de seu estilo, mas também pela negação da própria obra, ao pedir ao amigo Max Brod a destruição de seus escritos.

“Em Kafka”, anota Steiner em 1963, “a questão do silêncio é posta da maneira mais radical. É isso que lhe dá o lugar exemplar na literatura moderna. O poeta deveria parar? Em uma época em que os homens são obrigados a chiar e guinchar seus sofrimentos como besouros e ratos, será o discurso letrado, de todas as coisas a mais humana, ainda possível? Kafka sabia que no início havia o Verbo; ele nos pergunta: e quanto ao fim?”

Sessenta anos depois, Phillips procura esquadrinhar a origem dos chiados e guinchos de nossa crise atual:

Freud, assim como Kafka, sempre quis encontrar novas formas de falar sobre a exclusão. […] Ambos insistem que ser e se sentir excluído são problemas da humanidade e que ninguém está ou jamais foi excluído da experiência de ser excluído.

*

Pensando a psicanálise a partir da literatura e a literatura a partir da psicanálise, Phillips é um agente duplo na investigação da vida como ela é.

Um servidor de dois amos: o método psicanalítico e a liberdade artística. Sempre cruzando para lá e para cá a fronteira entre a doutrina freudiana e a ambiguidade da literatura, avança entre contrapesos: a liberdade da arte relativiza qualquer pretensão unificadora da psicanálise.

Afinal, “generalizar é ser um idiota”, como na epígrafe de William Blake, abrindo o ensaio “Morto ou vivo”.

“O psicanalista é uma pessoa sobretudo curiosa, e curiosa sobre a curiosidade”, anota em “Sobre não acreditar em nada”. 

E a própria psicanálise pode ser mais uma profissão da curiosidade do que da ajuda, embora esteja sempre disposta a encontrar a conexão entre as duas.

É um elogio à flexibilidade mental, um antídoto contra ideias fixas: “A crença sem curiosidade é estupidificante”.

Nem Freud escapa:

Devemos ler Freud da maneira como ele nos ensinou a ler os sonhos; ou seja, não devemos nos deixar impressionar demais com o que o sonho destaca ou exibe em primeiro plano; é preciso olhar para o que ele esconde ao dar pouca ênfase.

*

Phillips não quer, como sugere Camus, imaginar Sífiso feliz, sorrisão no rosto, empurrando e empurrando e empurrando a pedra morro acima.

“Heróis e heroínas trágicos […] são pessoas que não podem interromper a si mesmas nem ser interrompidas”, explica em “Sobre desistir”. “São pessoas que renegaram os benefícios da desistência, ou mesmo da hesitação.”

Ele prefere imaginar um Sísifo que sabe a hora de parar. Um Sísifo, digamos, analisado e “capaz de aceitar a perda, a vulnerabilidade”.

Desistência costuma ser vista como um fracasso, em vez de uma maneira de obter sucesso em outra coisa […] Há uma tirania da conclusão, do ato de terminar as coisas, capaz de inadvertidamente limitar nossa mente.

Phillips prefere imaginar um Sísifo que sabe a hora de parar. Um Sísifo ‘analisado e capaz de aceitar a perda’

Mais interessado em inícios do que em conclusões, Phillips celebra o improvável herói da desistência, ao invés do trágico herói da resistência.

Assim como as pessoas em geral não são loucas, mas levadas à loucura, elas não costumam desistir por conta própria, mas são forçadas a desistir. É a isso que o herói trágico resiste e é por isso que ele paga um preço tão alto.

É preciso imaginar Sísifo pedindo demissão daquele trabalho sem sentido para, digamos, abrir uma pousada em Arembepe: “Abrir mão é uma forma de abrir brechas. E nos perguntar para que, para quem e por que abrimos essas brechas”.

*

Os títulos dos livros de Phillips podem levar a mal-entendidos. E algumas de suas traduções no Brasil, mais ainda: Louco para ser normal (Going Sane) e O que você é e o que você quer ser (Missing Out) parecem caber nas prateleiras de autoajuda.

Mesmo no original, Phillips tangencia um certo tom apelativo. Uma capa de livro onde se lê “On Getting Better”, “On Wanting to Change”, “On Flirtation” ou “Attention Seeking” parece oferecer variações da cartilha de como-fazer-amigos-e-influenciar-pessoas.

Mas é justamente o contrário disso. O homem só será livre quando enforcar o último PowerPoint motivacional nas tripas do último coach.

Ele se empenha em hackear ideias totalizantes, aquelas soluções mágicas que parecem especialmente reconfortantes nestes tempos de incerteza radical. Contra o “estado de espírito fascista” e o “fechamento militante da cabeça”, recomenda a curiosidade.

*

“A curiosidade é uma questão humana essencial”, defende em “Sobre não acreditar em nada”. “Até porque ela tende a desfazer, a dissolver os essencialismos; porque tende para o desconhecido e o potencialmente incognoscível”. Só a curiosidade questiona as ideias feitas.

Phillips vê semelhanças entre o cético e o crente. Seriam duas maneiras de estar no mundo igualmente travadas por convicções inabaláveis:

Acreditar que não há nada em que acreditar é uma atitude tão onisciente, a seu modo, quando saber em que e como acreditar.

Ele escapa dessas duas posições. Não cai nem na tentação de onisciência, nem na tentação do ceticismo. Prefere insistir na interrogação que cravar um ponto final, como quem reconhece que, diante da complexidade de existir, não existem respostas fáceis.

Até o autoconhecimento, essa obsessão de palestras inspiracionais e adjacências, sai arranhada. “Em que sentido o projeto tradicional e convencional de conhecermos a nós mesmos é uma boa maneira de passar nosso tempo?”, provoca.

Em um mundo que grita o tempo todo siga em frente e aplaude a resiliência, ler Sobre desistir é como se deitar no chão para recuperar o fôlego — e “uma das vantagens de se deitar no chão é que não há mais para onde cair”, lembra Philipps, citando o diário de, sempre ele, Kafka.

Quem escreveu esse texto

Fernando Luna

Jornalista, é colunista da revista Gama.

Matéria publicada na edição impressa #83 em julho de 2024. Com o título “Freud explica, Kafka complica”