Autobibliografia,

Era só o que faltava, um livro de poesia

A capa verde, com tipografia bem comportada anunciando “Manuel Bandeira” em cinza e “Antologia poética” em branco, não chegava a empolgar

21mar2025

Pensei: era só o que faltava, um livro de poesia.

Não apenas um ou outro poema jogado aqui e ali, atrapalhando a diagramação do calhamaço de literatura que pesava na mochila da Company a caminho da escola. Não. Dessa vez era um livro inteirinho de versos.

Talvez você tenha tido mais sorte, mas no meu colégio a lista de leitura obrigatória era desanimadora. Se em casa eu não largava “Feliz Ano Velho”, romance de formação da minha geração, na aula de português precisava encarar “Iracema” e toda pajelança do José de Alencar. 

Agora essa. Poesia. 

A capa verde, com tipografia bem comportada anunciando “Manuel Bandeira” em cinza e “Antologia poética” em branco, não chegava a empolgar. Igualmente desenxabido o retrato em branco e preto, ali no canto, quase uma foto de passaporte com autor sério atrás dos óculos.

Meus hormônios buliçosos, porém, encontraram o caminho na página 59: “Libertinagem”.

Parecia promissor. E era mesmo, embora de um modo inteiramente diferente do que eu imaginara – o que eu imaginara, aos 14 anos de idade, é melhor deixar guardado nesse pretérito mais-que-perfeito chamado adolescência.

Já o primeiro poema, “Não sei dançar”, dava um sacode no que aquele moleque imaginava ser poesia. Não tinha rima nem solução, não falava da Lua nem ouvia estrelas: “Uns tomam éter, outros cocaína”. Eu, mirim, não conseguia sequer tragar um cigarro.

Quatro páginas adiante, “Pneumotórax”, um humor absurdo como “TV Pirata”. 

“O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado”, diz o médico. O eu-lírico logo desaba num eu-dramático. “Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?”, pergunta, dando a deixa para o plot twist: “Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.”

Sem falar no revoltado de “Poética”, “farto do lirismo bem comportado”, retórica de estudante tentando mudar o mundo nas reuniões do grêmio. E, mais que tudo, o “Porquinho-da-índia”, que “não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas”, como a Kiki não fazia caso nenhum de mim.


Isso tudo fez – e faz cada vez mais – muito sentido. Poesia era mesmo o que faltava.

Todo mês, o leitor Fernando Luna faz um exposed de seu relacionamento íntimo com um livro.

Quem escreveu esse texto

Fernando Luna

Jornalista, é colunista da Quatro Cinco Um da revista Gama.