Poesia,
Recuperar o silêncio
Versos de Júlia de Carvalho Hansen não temem a dicção críptica e as imagens sombrias
21nov2018 | Edição #13 jul.2018Luz e cegueira, plantas e estrelas, medo e destino. Esses são só alguns dos motivos comuns ao poema “alforria blues” e ao livro Seiva veneno ou fruto, de Júlia de Carvalho Hansen.
Mas, diferente de qualquer poema de Seiva, em que Hansen parece ter encontrado uma forma mais concentrada, “alforria” é longo: “E quem teme o excesso tem por destino o excesso”, reza um de seus versos, “E não cogito mais servir ao medo”. É assim, destemida, que essa voz se lança. Como traço de liberdade, a linguagem coloquial está presente desde a abertura: “Este livro é inédito/ tipo a vida. Quem o escreveu/ fui eu”. Ao mesmo tempo, aforismos nos fazem lembrar de Guimarães Rosa, com alta densidade poética e sintaxe desconstruída: “Já sou poeta e não sei já”.
Se em “alforria” Hansen não tem medo do excesso, em Seiva ela não teme o obscuro. Não só pela profusão de imagens sombrias (bestas, breu, buraco negro); também pela dicção críptica, em que tais imagens encontram sua melhor forma. Deparamos com certa oralidade, mesmo que para falar da morte — “Você morre/ e sua matéria/ fica na terra, certo?” —, além de acenos reconfortantes da música popular brasileira. Mas essa não é a regra. A regra está nestes versos que nos oferecem uma espécie de poética da autora: “não tinha que me fazer explicar/ (…) R. de ressentimento/ esburacando a minha língua”.
Os vinte e sete poemas de Seiva não têm título: conforme viramos as páginas, adentramos o fluxo poético. Há um trabalho visível em torno do ritmo e das rimas, e versos se comunicam em paralelismo, criando ecos. O enjambement, que vai dando o andamento do livro, é referido explicitamente em “reconheces, portanto/ um pistoleiro vindo de poncho te matar/ para nos levar um petroleiro se aproximando/ ou a cavalgada a que os franceses chamam enjambement”.
A poesia de Hansen é forjada na natureza. Mas “Manadas abrem com fogo os caminhos” parece mudar o rumo de Seiva. Os decasssílabos trazem à obra um tom épico: “Vão matar aquele que proferiu/ a palavra animada. Vai morrer/ aquele que falou”. A segunda estrofe é lapidar: “Há séculos árvores se matam/ pelas impressões dos que dizem./ Há séculos morrem pelos verbos.” Não se trata de árvores suicidas, e sim de uma voz passiva: árvores são mortas. Pelos livros, “pelos verbos”. Entre os homens da manada, está o silêncio, “um dos nossos profetas”, que fala contra todos os que “mantém vivas/ as informações proliferando”: “cabos elétricos”, “vizinhos”, “jornais”, “compartilhadores”. Chegamos à atualidade, com um léxico que alcança o mundo virtual, onde as palavras geram violência de manadas linchadoras, e o silêncio surge como dever combativo do poeta.
Em seguida, “Como um relógio cuco quando apita a hora” tematiza o dinheiro, “é o credo dos tempos, não disse? E haja quem puder renegar o deus”. O poema escancara a brutalidade do capitalismo financeiro, surpreendendo o leitor que imaginou estar diante de uma poesia da natureza. “Saberem-se errados, turvos, iludidos, desmascarados/ não faz de vocês pessoas melhores ou mais reais” é talvez o mais brutal de Seiva. Diferente do início, tudo está às claras numa sintaxe simples.
Desde a primeira página de ‘Seiva’, a autora fala do fazer poético, outro eixo temático da obra
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A morte, fio que percorre todo o livro, volta inexorável no final, fazendo pensar em Hilda Hilst. “Senhora soberana/ da escarpa rochosa em declive” é um dos vocativos de Hansen, que aventa seu próprio fim, imaginando se trincará a mandíbula ao tentar “barrar na boca o pastoso da paz”.
Desde a primeira página de Seiva, a autora fala do fazer poético, outro eixo temático da obra: “Voltar a estudar, não sei/ mais compor meus poemas”. É preciso saber que “palavras abrem portas/ nas orações que ainda não foram compostas”. Já no derradeiro poema o imperativo é sair delas, recuperar o profético silêncio, retornar à natureza: “Da palavra sair/ habitar outros mundos (…) Ser seiva, veneno. Ou fruto”. Universal, a poesia de Hansen nunca terminará de ser lida, desdobrando-se em cadeias de significado que abismam o leitor. Um diálogo fecundo entre natureza e sagrado.
Matéria publicada na edição impressa #13 jul.2018 em junho de 2018.