Poesia,

Poesia contra o bobo solene

A lírica e antilírica do grande poeta chileno que demorou para ser acolhido no Brasil

28fev2019 | Edição #20 Mar.2019

Por que demorou tanto tempo para que saísse no Brasil uma boa antologia de Nicanor Parra, um dos maiores nomes da poesia latino-americana do século 20? Como um poeta que teria muito a ver com o nosso modernismo, que trouxe para a poesia a potência do coloquialismo e do humor, se manteve afastado das livrarias brasileiras, durante toda a sua vida — e uma longa vida, pois faleceu aos 103 anos, em 2018? Parece um enigma. O antipoeta, como é chamado, circulou em algumas traduções esparsas, mas sem que sua poesia penetrasse na lírica brasileira ou na antilírica local. Nosso antilírico por excelência, João Cabral de Melo Neto, era de uma natureza bem diversa da de Parra. 

Com a edição dessa antologia organizada e traduzida por Joana Barossi e Cide Piquet, com 75 poemas selecionados a dedo, a voz desse endiabrado chileno desembarca em solo bastante fértil — num momento em que a poesia brasileira tem suplantado outras formas de representação do presente, como que cumprindo um papel social que sempre foi para ela uma pedra no caminho. O movimento de interesse por sua antipoesia veio num crescendo nesses primeiros anos do século 21. Para uns, esse impulso estaria vinculado à popularidade póstuma da obra de outro genial chileno, Roberto Bolaño, um entusiasta de sua poesia. Inclusive, uma frase de Bolaño serve de epígrafe à edição brasileira: “Quem for valente, que siga Parra”.

A realidade — e sua complexa representação — sempre esteve no horizonte de Nicanor Parra, nascido em 1914, em San Fabián de Alico, área rural chilena, filho de um professor primário e de uma tecelã e costureira. Além de Parra, outro fruto genial dessa família era sua irmã, a cantora e compositora Violeta Parra, um dos ícones da canção latino-americana. Esse meio popular foi fundamental para que ele forjasse sua poética, ou tivesse consciência de onde ela brotava. Não à toa, a canção é um gênero com o qual ele trabalhou em vários momentos de sua longa trajetória, iniciada em 1937, com Cancionero sin nombre, fortemente influenciado pela poesia popular chilena e pelos romanceros do espanhol Federico García Lorca. 

A antologia que acaba de sair (e que, em menos de dois meses, já se encontra na segunda tiragem) é centrada na produção de Parra entre 1954 e 1972. Ou seja, começa no momento em que, vencendo as influências iniciais de Lorca, e procurando enfrentar o lirismo de poetas de vanguarda como Vicente Huidobro, Gabriela Mistral e principalmente Pablo Neruda (apenas dez anos mais velho que ele), publica aquele que seria o seu livro mais comentado e mais discutido: Poemas e antipoemas. E, claro, aquele que o designou como antipoeta, uma assinatura que, fixada para sempre, quase parece um golpe de marketing, como lembrou o crítico inglês Niall Binns. Outros poetas poderiam ser telúricos, neobarrocos, surrealistas, mas antipoeta, apenas um, Nicanor Parra.

E ele tinha consciência de que havia dado um golpe de mestre, como se pode ler no provocativo poema “A montanha russa”: “Durante meio século/ A poesia foi/ O paraíso do bobo solene./ Até que cheguei eu/ E me instalei numa montanha-russa.// Subam, se quiserem./ Claro que não respondo se saírem/ Botando sangue pelas bocas e narinas”. Essa ruptura com uma tradição lírica — a do “bobo solene” — se processou em várias camadas: incorporação de elementos orais da vida cotidiana, dessacralização de temas tradicionais, releitura a contrapelo da tradição, retomada de elementos burlescos medievais e construção de uma dicção que procurava se comunicar diretamente com o leitor. 

Nosso antilírico por excelência, João Cabral, era de uma natureza bem diversa da de Parra

“Considerem, rapazes,/ Esta língua roída pelo câncer:/ Sou professor de um colégio obscuro/ E perdi a voz de tanto dar aulas”, escreve em seu “Autorretrato”, no qual elenca a degradação de um professor de ginásio (o próprio Parra foi professor de matemática e física na Universidade do Chile). “Atenção, senhoras e senhores, um minuto de atenção:/ Virem um instante a cabeça para este lado da república,/ Esqueçam por uma noite seus assuntos pessoais,/ O prazer e a dor podem esperar do lado de fora:/ Escuta-se uma voz deste lado da república./ Atenção, senhoras e senhores! um minuto de atenção”, declara seu personagem em “O peregrino”. 

Quem fala?

A voz da antipoesia é de um personagem; fala com o leitor, exortando-o ou dando-lhe uns piparotes. Parra criou várias vozes nesses poemas, numa espécie de síntese social tensionada. Marxismo, nazismo, Freud, Stálin, o individualismo burguês, o progresso selvagem e devastador do capitalismo etc., saem bastante arranhados. Não que Parra seja niilista. É vital, como poucos poetas. Mas tem uma percepção aguda da realidade concreta e das esparrelas dos discursos. “Giramos num círculo vicioso./ Dentro da jaula há alimento./ Pouco, mas há./ Fora dela só se veem enormes extensões de liberdade.” 

Ao longo de sua obra, Parra jamais perdeu esse vigor de ataque: “Está na hora de modernizar esta cerimônia/ E eu enterro minhas plumas na cabeça dos senhores leitores!”. No entanto, procurou uma síntese entre a poesia e a antipoesia, entre o lirismo tradicional, do qual nunca abriu mão (ele é autor do poema fortemente lírico “O homem imaginário”), e suas pedradas no telhado de vidro da melancolia e do bom-mocismo. Sua voz, ou vozes, procura sintetizar as contradições ideológicas que perpassam o homem moderno: “Atravessamos tempos calamitosos/ impossível falar sem incorrer em crime de contradição”. E ele fez da contradição uma poética que visa desarmar os discursos cristalizados.

Difícil saber por que sua obra demorou tanto tempo para ser acolhida no Brasil. Nosso bloqueio histórico com os vizinhos latino-americanos? Ou será porque nossa poesia falou, durante muitos anos, de dentro de uma classe social, como objeto de privilégio social, algo avesso a sua poética? Só recentemente as coisas começaram a se transformar por aqui, graças aos anos de democratização do ensino. E só agora sua poesia começa a ecoar. Este é o momento em que mais precisamos dessas vozes dissonantes e políticas, como a de Parra, desarmando a bomba do autoritarismo, que mais uma vez quer se instalar no coração trincado do país.

Quem escreveu esse texto

Heitor Ferraz Mello

Jornalista e crítico literário, publicou Hoje como ontem ao meio dia (7Letras).

Matéria publicada na edição impressa #20 Mar.2019 em fevereiro de 2019.