Poesia,

Quatro poemas para a Palestina

Escritor angolano João Melo enviou à Quatro Cinco Um quatro poemas dedicados “à dramática situação da região”

21nov2023

O escritor angolano João Melo enviou à Quatro Cinco Um quatro poemas dedicados à Palestina, em resposta “à dramática situação da região, que choca e envergonha a humanidade inteira”. O primeiro foi escrito em 2021 e os três últimos foram compostos nos últimos dias. 

João Melo nasceu em Luanda em 1955, estudou direito em Coimbra e jornalismo em Niterói, com mestrado no Rio de Janeiro. Foi professor universitário, parlamentar (1992-2017) e ministro da Comunicação Social (2017-19). Um dos fundadores da União de Escritores Angolanos, publicou mais de vinte livros (poesia, contos, ensaios) em Portugal, Angola, Brasil, Itália e Cuba. É autor de Diário do medo (Urutau, 2021), poemas sobre as perdas da pandemia, e Filhos da pátria (Record, 2008), contos sobre a Angola pós-independência.

RÉQUIEM PARA A PALESTINA

Os rockets voadores planam sobre a antiga Palestina,
mas os seus olhos luminosos
apenas veem
uma vasta sombra de sangue e luto,
de onde se elevam,
como gritos de aço ferido,
desesperadas canções que já ninguém escuta.

A antiga Palestina,
terra de todos os povos
e todas as crenças,
não existe mais.

Foi usurpada pelos alegados herdeiros
do esplendoroso complexo de culpa ocidental,
alimentado pelo nosso ouro e as nossas vísceras.

Os novos centuriões
esmagam friamente as cabeças ensanguentadas
que tentam erguer-se
do perplexo fundo da História,
sem saber onde estão ou
ao menos
onde poderão morrer em paz.

Certos povos morrem assim: simplesmente.

Sem
notícia.

De morte, mais do que eterna,
absoluta. 

CONVERSA COM MAHMOUD DARWISH

Não, poeta, a terra dos homens
não é de todos os homens,
pois pertence aos eleitos, aos que sabem
encantar o fósforo e usá-lo
para triturar por dentro, lentamente, a cabeça das crianças 
que jamais serão assunto
para os seus benevolentes discursos, com os quais
empurram pela vossa garganta ferida a liberdade e a democracia
junto com os vossos milhões de mortos desconhecidos,
enquanto sois forçados a marchar como mortos-vivos
rumo ao nada.

Desde que a História entrou pela vossa porta
como um ladrão ousado, poeta,
estais condenados a um abismo atrás do outro. Os que usurparam
as vossas oliveiras
dizem: não existirá amanhã para vocês; sereis culpados
se tentardes tirar água dos nossos poços
ou disparar obuses.

Eles prometeram e cumpriram:
o vosso futuro voou pelas janelas estilhaçadas,
está confinado na cerca onde estais amontoados
como cabras que conhecem o seu destino,
aguarda-vos, traiçoeiro,
nos poços selados à luz do dia.

O teu sonho de pedra, poeta,
foi engolido pela boca suja de sangue dos usurpadores
do nome de Deus
e daqueles que os veneram e exaltam. Jamais regressareis
aos vossos casebres,
as galinhas e os cavalos da vossa infância
já desistiram de aguardar pela vossa surpreendente chegada,
de tanto marcharem sem rumo,
mas jubilosa.

Não há nenhum jardim celestial
em que tu, poeta, e Rita,
o teu improvável amor,
possam festejar a aparição de um novo outono
no deserto onde continuam a amontar-se
os vossos corpos carbonizados.

Mas continuais a ter o direito
de morrer como quiserdes.

ÚLTIMO MANIFESTO

Não queremos palavras condoídas,
mensagens politicamente corretas,
como redondilhas,
corredores humanitários,
embrulhos de água morna, leite azedado
e latas de conserva
tombando dos céus cinzentos (é o fumo
dos canhões!),
do benigno ventre 
de helicópteros cordiais.

Não queremos vigílias, missas,
manifestações,
cartas abertas,
promessas de diálogo de surdos,
juras de amor envenenado.

Não queremos tratados, acordos,
documentos que assinais com heroico enfado
— oh, como é patética
a vossa pose! —,
com pressa de regressar
às vossas casas no campo
e às mesas de poker.

Queremos apenas
morrer.

Aqui mesmo, junto a estas pedras
inúteis e ressequidas,
debaixo das últimas oliveiras.

URGENTE: NOTÍCIA DA MORTE DE HEBA ABU NADA

Desculpai-me a urgência, ó seres
bem pensantes, em particular
os poetas translúcidos
e autorreferentes,
mas uma irmã nossa,
a poeta palestina Heba Abu Nada,
acaba de morrer em Gaza sob os estilhaços de uma bomba benevolente,
enviada por outro Deus,
diferente daquele com quem ela conversava
todos os dias.

Hesitei em transmitir-vos tão pressurosamente
esta fatídica notícia. Deveria, talvez, aguardar
que se dissipasse o fumo cinzento-chumbo da bomba que a matou,
enquanto ela, por certo,
perscrutava o céu em busca de uma nesga de luz e,
quem sabe,
dos últimos pássaros.

Ou, mais curial ainda, 
seria melhor não dizer nada,
enquanto os contemporâneos oráculos hegemónicos,
como todos os oráculos,
não fizessem circular um comunicado independente
a confirmá-lo sem quaisquer dúvidas
ou questionamentos incómodos.

Porém, quando li
as derradeiras palavras de Heba Abu Nada antes de morrer,
apressei-me a espalhar esta notícia,
antes que o seu bilhete fosse censurado
pelos defensores da liberdade seletiva:

“Se morrermos, saibam que estamos alegres e firmes,
pois somos pessoas de verdade!”

Quem escreveu esse texto

João Melo