Cinema, Literatura, Poesia,

Em busca da eternidade

Filme e livro registram as tentativas da escritora de se comunicar com os mortos entre 1974 e 1979

21nov2018 | Edição #13 jul.2018

Hilda Hilst pede contato estreia no cinema ao mesmo tempo que chega às livrarias. Filme e livro de autoria de Gabriela Greeb, que participa ao lado do diretor de som Vasco Pimentel da mesa “Performance sonora” da Flip. A publicação traz o storyboard (esboço sequencial ilustrado) e a partitura do filme, além de entrevistas e notas da diretora ao longo de seu processo de criação e pesquisa. Destaque para o inventário das tentativas de Hilda de se comunicar com os mortos, entre 1974 e 1979. Ao todo, mais de cem horas de gravações de áudios transcritos, dos quais foram extraídos verdadeiros solilóquios da poeta. Material nunca antes editado.

Em suas notas, Greeb conta como encontrou essas gravações em sua primeira visita à Casa do Sol, onde Hilda morava: “No quarto de Hilda, no chão, notei uma caixa de papelão cheia de fitas magnéticas, rolos e cassetes. O filme estava dentro daquela caixa”. Quando questionado sobre seu conteúdo, José Luís Mora Fuentes, então herdeiro de Hilda, respondeu que “não era nada”. “Não é legal falar disso”, acrescentou. Mas em seguida não se conteve: “Ela passou anos tentando esse diálogo, […] não se conformava com o fato de ter escrito uma obra gigante e depois morrer no esquecimento. A finitude. Hilda buscava a eternidade como uma continuidade da vida”.

“Hilda, já morta, tenta se comunicar com os vivos”, Greeb chega ao mote da empreitada que abraçaria a partir de então. Quando aceitou o convite de Mora Fuentes para filmar, no final de 2008, ela ainda não era leitora de Hilda. Leu e releu toda a sua obra já imersa no projeto e passou anos ouvindo os tais experimentos.

Hilda usava ruído branco, chiado eletromagnético presente entre as estações de rádio, para captar as supostas vozes de outras dimensões. Seguia as instruções do cientista sueco Friedrich Jürgenson, autor de Telefone para o além, insuspeito de se valer de qualquer conotação religiosa. O fazia a maior parte das vezes sozinha, mas também acompanhada. No livro se topa com uma das sessões ao lado de Lygia Fagundes Telles.

Essas investigações de Hilda ficaram muito tempo relegadas ao folclore em torno de seu nome e foram, inclusive, tema de uma reportagem do “Fantástico”, no final da década de 1970. O trabalho de Greeb, por sua vez, retirara-as do limbo, ao explorar os aspectos poéticos dessa busca, redimensionando-as pela força das imagens que evocam e pelo chamado à escuta do que se entoa na voz da própria Hilda durante as tentativas de contato com figuras como Clarice Lispector e Vladimir Herzog, entre outras, capturadas nessas gravações. Nesse sentido, é nítida no livro a mescla de uma visada interpretativa, bastante autoral, com o registro documental. A ver como se realiza no filme.

A publicação é ainda um convite ao contato sensorial não apenas como metáfora. Por meio de um leitor de código QR, é possível “ouvir o livro”: o filme, sua trilha, as entrevistas e uma seleção dos solilóquios de Hilda.

O processo do livro é marcado pelo mnemônico: muitos passam para o outro lado enquanto ele se dá

Hilda Hilst pede contato é também refrão em meio a páginas que buscam encarnar e dar conta do corpo exposto ao incorpóreo, e até certo ponto fantasmagórico, de sua temática. Relação que o projeto gráfico, concebido por Arthur Lescher e Mariane Klettenhofer, contempla, dando materialidade ao imaterial e vice-versa. O storyboard, de Bertrand Guillou, abre a publicação nessa mesma toada.

O processo trazido à tona no livro é marcado pelo mnemônico e pelo in memorian. Muitos passam para o outro lado enquanto ele se dá, caso de Mora Fuentes, Massao Ohno, editor de Hilda, e Dante Casarini, que foi marido da escritora e com ela construiu a Casa do Sol.

Em suas notas, Greeb compartilha ainda outro tipo de bastidor desse seu longo tempo à escuta de Hilda. É o caso de um sonho em que se dá um diálogo por meio de um telefone vermelho antigo.

“Hilda, temos que desligar”, repete Greeb. “Só se amanhã você vier nadar na minha piscina. A piscina era de ladrilhos brancos e estava vazia, coberta apenas de uma rede transparente, para deitarmos sobre ela. É tempo de ir ao cinema.” Assim encerra a ligação (e o livro), num convite a seguir em contato.

Quem escreveu esse texto

Luciana Araujo Marques

É doutoranda em teoria e história literária na Unicamp.

Matéria publicada na edição impressa #13 jul.2018 em junho de 2018.