Poesia,

Agarrar o peixe

Publicado originalmente em 1985, livro de estreia em verso da escritora portuguesa Adília Lopes sai pela primeira vez no Brasil

20nov2018 | Edição #12 jun.2018

“Eu gosto de me fazer passar/ por uma rapariga ordinária”, escreve Adília Lopes. E continua: “a Magda era mesmo ordinária/ a princípio era isto o que mais/ me atraía nela depois foi isto/ o que sobretudo me desgostou dela”. Esses versos de “A salada com molho cor-de-rosa” integram o primeiro livro da poeta — ou poetisa, como ela prefere —, Um jogo bastante perigoso, lançado em Portugal em 1985 e que sai pela primeira vez no Brasil neste mês.

Adília Lopes não nasceu Adília Lopes. Nasceu Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira, em Lisboa, no dia 20 de abril de 1960. Seu nome de poeta só viria à luz em 1983, dois anos antes do seu volume de estreia, lançado enquanto cursava literatura e linguística portuguesa e francesa. Antes disso, abandonou a graduação em física por recomendações médicas durante um quadro fundo de depressão ou, em suas palavras, uma “descida aos infernos”.

Personagens

“Adília Lopes é um nome de crisma. Maria José é o nome de baptismo”, disse em entrevista à revista Inimigo Rumor, em 2001. Em outra entrevista, de 2005, dessa vez ao jornalista e editor português Carlos Vaz Marques, contou que não gostava do nome que os pais lhe deram. “Na vida escolhemos muito pouco”, justificou. 

Como se vê, Adília gosta de criar personagens — a começar por ela própria. Seus poemas são épicos em miniatura. Seja para tratar de assuntos domésticos, seja para fazer menção a Proust ou Camões, ela, como exímia contadora de histórias, tem obsessão pelos detalhes.

Não há hierarquia, não há tema erudito o suficiente, digno de mesura. Ao escrever sobre Mário de Sá-Carneiro, ela se pergunta o que seria “mais irreversível”: cortar ou polir as unhas. Em “Memória para Esther Greenwood”, em alusão à protagonista de A redoma de vidro, romance de Sylvia Plath, medita sobre uma banheira de água quente. No fim do banho, que é também o fim do poema, ela se enrola na toalha, se sentindo “pura e fresca/ como um recém-nascido”. 

Adília gosta de pôr sua lupa em dilemas aparentemente prosaicos para estudar as saídas possíveis. As situações banais ganham tintas pesadas, como acontece em “O presente”, quando anuncia que vai dar ao seu interlocutor uma caixa de joias com um anel precioso. Mas na caixa há uma serpente que pode picar o dedo e levar à morte. Cabe à pessoa que recebe o presente a decisão de abrir a caixa ou ficar para sempre imaginando como seria o tal anel. 

O tema da escolha se repete em “Arte poética”, quando ela diz que “Escrever um poema/ é como apanhar um peixe/ com as mãos”. O corpo a corpo com o peixe resulta em duas possibilidades: “ou morremos os dois/ ou nos salvamos os dois”. Para chegar ao alívio de se livrar do peixe, ela percebe, é preciso antes apanhá-lo. 

O paradoxo nos poemas de Adília Lopes muitas vezes se disfarça em cenas cômicas e inofensivas — até o momento em que algo se quebra e atinge uma camada misteriosa, sombria, imprevisível. É que esses pequenos impasses são, na verdade, questões de vida ou morte. Como se sabe, “A poesia é noite escura”. 

“Arte poética” é também o título de uma série composta por cinco textos em prosa em que Sophia de Mello Breyner Andresen, uma das principais referências de Adília, pondera sobre seu ofício. No segundo, ela escreve: “(…) a poesia é a minha explicação com o universo, a minha convivência com as coisas, a minha participação no real, o meu encontro com as vozes e as imagens. Por isso o poema não fala de uma vida ideal mas sim de uma vida concreta”. 

Embora o estilo das duas seja bem diferente — Sophia tem dicção mais solene —, esse é o mote que rege os versos da autora de Um jogo bastante perigoso: a vida concreta, com toda sua carga de angústia, humor autodepreciativo, surpresa, rejeição, frustração e, sobretudo, estranheza. Nesse sentido, um dos seus poemas mais reveladores se chama “A rosa com bolores”. Nele, a poeta conta que mantém, por hábito, um ramo de rosas em sua mesa de cabeceira e que a primeira coisa que faz todas as manhãs é observar as flores para saber se “algum bolor poisou/ na pele das rosas”. 

O bolor, ela explica, é muito raro e costuma crescer de maneira lenta e desigual pelas pétalas das flores até se alastrar e não sobrar mais sinal delas. O fungo vai “alimentando-se de si próprio/ ou seja suicidando-se/ naquele acto de infinito amor/ por si próprio/ que é afinal todo o suicídio”. Ao fim do longo processo de despedida da rosa, Adília está exausta e decide ir dormir: “as rosas com bolores cansam-me”. 

Assim como Sophia, Adília vive com a antena ligada às mínimas preciosidades que o mundo reserva, concentrada em cada movimento, por mais discreto que seja. Podem ser rosas ou bolores, caixas de joias ou serpentes. Não se trata, como afirma Sophia, de “uma beleza estética mas sim de uma beleza poética”. 

“A rosa com bolores” aparece em Antologia, volume lançado em 2002 na coleção Ás de Colete, parceria da Cosac Naify com a 7 Letras, com posfácio de Flora Sussekind. Era o único livro da poeta portuguesa no Brasil até então. Antes disso, em 2001, a revista Inimigo Rumor já havia trazido uma amostra do seu trabalho. 

Em Portugal, Um jogo bastante perigoso foi incluído em Obra, reunião de catorze títulos lançados até 2000, e, mais adiante, em Dobra: poesia reunida (1983-2007), em 2009. Este último volume, ampliado e revisto em 2014, numa edição de capa dura com mais de setecentas páginas, representa a consagração de Adília como uma das poetas vivas mais extraordinárias da língua portuguesa. 

Viver é perigoso

Mas Adília não é apenas poeta. Escreve também crônicas, pequenos ensaios ou seja lá como podemos chamar sua prosa altamente poética de Manhã e Bandolim, os últimos títulos lançados em sua terra natal, inéditos no Brasil. Acontece que a poesia — o gesto de segurar o peixe com as mãos — parece ser seu eixo principal, sua aliança com tudo o que está ao redor, sua maneira de não passar em branco, de não ser uma rapariga ordinária. 

Na entrevista com Carlos Vaz Marques, ele pergunta por que Adília escolheu o título Um jogo bastante perigoso para seu primeiro volume de poemas. Ela responde: “Eu acho que viver é perigoso”. E conclui: “Escrever poesia também é perigoso. Custou a cabeça de muita gente”. 

Quem escreveu esse texto

Alice Santa’Anna

Poeta, e autora de Pé do ouvido (Companhia das Letras).

Matéria publicada na edição impressa #12 jun.2018 em junho de 2018.