Literatura,
Um livro-cidade
Porta de acesso ao universo ficcional de Elena Ferrante, “Frantumaglia” é uma grande obra de ensaísmo literário, cultural e político
13nov2018 | Edição #7 nov.2017Frantumaglia reúne uma considerável quantidade de cartas, entrevistas, trechos suprimidos de romances e todo tipo de reflexão que Elena Ferrante acumulou de 1991 a 2016. Duas questões preliminares se impõem a qualquer um que pretenda comentar ou resenhar o livro. A primeira diz respeito ao título: Frantumaglia é um neologismo que, segundo Ferrante, era usado por sua “mãe costureira” para expressar “como [ela] se sentia quando era puxada para um lado e para o outro por impressões contraditórias que a dilaceravam”. A palavra, acertadamente mantida na ótima tradução de Marcello Lino, deriva do italiano frantume: caco, fragmento, destroço. O nome impresso na capa, portanto, designa um apanhado de cacos contraditórios que foram se disseminando por 25 anos. A segunda questão, mais óbvia, consiste na pergunta: que estatuto se deve atribuir a um livro que flerta com o memorialismo de uma autora de quem não se conhece nem o nome? Como abordar esse paradoxo?
‘Frantumaglia’ é uma grande obra de ensaísmo cultural e político que, à medida que avança, passa de uma dicção mais irritadiça a um discurso ponderado
Hoje há fortes indícios de que a pessoa por trás do nome Elena Ferrante seja a tradutora Anita Raja, casada há décadas com o também escritor Domenico Starnone. Mas tais indícios não anulam o fato de que, por ora, Elena Ferrante é apenas o nome ficcional que alguém escolheu para assinar seus livros.
(Essa simples constatação me obrigaria a recorrer a formas hipotéticas — o futuro do pretérito — para tratar de tudo o que está reunido em Frantumaglia: o volume compila textos que teriam sido escritos ao longo de duas décadas e meia. Mas opto convencionalmente, até por amor ao estilo, por frases assertivas: Ferrante escreveu, comentou, confundiu.)
Superadas as preliminares, é preciso dizer que Frantumaglia é uma grande obra de ensaísmo literário, cultural e político. Dividido em três partes — “Papéis, 1991-2003”, “Tésseras, 2003-2007”, “Cartas, 2011-2016” —, o livro sofre uma progressiva mudança de tom: à medida que avança, Ferrante se torna mais paciente, menos brusca, passando de uma dicção mais tateante e irritadiça a um discurso ponderado e não menos afiado.
Para além do interesse e prazer que os leitores da autora terão ao estabelecer pontes entre sua obra ficcional e esse livro de “ensaios” — vou preferir chamá-los assim —, mesmo quem nunca leu uma única linha dela, por desconhecimento ou preconceitos vários, vai se impressionar com a quantidade de reflexões afiadas e imagens fulminantes contidas nele.
Tanto que me vem a vontade de desaparecer como resenhista e simplesmente encadear uma série de citações memoráveis. Como estas três: “Há em italiano uma expressão intraduzível em seu duplo significado: io non ci sto. Literalmente, significa: não estou aqui, neste lugar, diante daquilo que vocês estão propondo que eu aceite. No uso comum, porém, significa: não estou de acordo, não quero. A recusa é ausentar-se dos jogos de quem esmaga todos os fracos”; “O abandono é uma ferida invisível que dificilmente sara. Atrai-me do ponto de vista narrativo porque sintetiza bem a precariedade do que, em geral, consideramos constante, ‘natural’. O abandono corrói as certezas dentro das quais achávamos que vivíamos com segurança”; “Acho que, historicamente, nos interessarmos tão pouco pelo bem comum fora da porta de casa não contradiz o fato de a família também ser um lugar de confronto violentíssimo”.
‘A realidade dos fatos, a que sempre recorremos como se fosse simples e linear, é um emaranhado inextricável, e a literatura tem de entrar nesse emaranhado’
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Pincei essas frases quase ao acaso, o livro está cheio de outras assim. O que demonstra o engenho e a argúcia com que Ferrante manipula a linguagem, operando incessantemente aquilo que Hans Gumbrecht definiu como “produção de presença”. Dito de outro modo, ela consegue ser, sem estar presente, Marianne Moore e Francis Ponge simultaneamente, porque “emprega quando escreve/ instrumento cortante:/ bisturi, simples canivete”, e “com ele envolve tanto a coisa/ que quase a enovela/ e quase, a enovelando/ se perde, enovelado nela”. Estes versos de João Cabral, tirados do poema “O sim contra o sim”, dizem bem das forças antagônicas e complementares que se desfazem e refazem na prosa de Ferrante.
O desejo de observar de fora, quase objetivamente, de recortar e isolar coisas que estão inextricavelmente enoveladas — e nas quais a voz autoral sempre se enovela —, é uma espécie de baixo contínuo que percorre todo o livro. “Estou convencida”, diz Ferrante numa das tantas entrevistas que deu por escrito, “de que a realidade dos fatos, a que sempre recorremos como se ela fosse simples e linear, é um emaranhado inextricável, e a literatura tem como tarefa entrar nesse emaranhado sem esquematismos convenientes”.
Passado moderno
A coragem de avocar para a literatura uma tarefa, um ethos, soaria a grande parte dos ouvidos descolados de hoje como ingenuidade ou anacronismo. Anacronismo deliberado, como tudo em Ferrante, que lembra em certa medida o de Pasolini — um dos únicos escritores italianos, senão o único, citado nominalmente na tetralogia napolitana A amiga genial — quando, num famoso poema, se disse “uma força do Passado […] mais moderno que qualquer moderno”.
Formada em “estudos clássicos”, a autora não por acaso está sempre pondo em contato, em curto-circuito, tempos e espaços distantes. Nessa cartografia, Cartago e Nápoles desempenham um papel importante. E, ao falar de Cartago e Dido, Ferrante também está falando de Nápoles e de suas personagens femininas: “O que mais chamou a minha atenção foi o uso que Virgílio faz da cidade. Cartago não é apenas um cenário, não é uma paisagem urbana para personagens e fatos. Cartago é o que ainda não é, mas está para se tornar, matéria em transformação, pedra abalada por cada movimento interno dos dois personagens [Dido e Eneias]”.
Frantumaglia é esse livro-cidade, que cresce e se expande nem sempre com um planejamento preciso, com suas praças, seus becos, estradões e arrabaldes. Como Nápoles, como qualquer cidade moderna, sempre na iminência de algum colapso.
Matéria publicada na edição impressa #7 nov.2017 em junho de 2018.