Literatura,
O vietnamita intranquilo
Viet Thanh Nguyen renova o romance de espionagem com uma reflexão poderosa sobre colonialismo e identidade
19jul2024 • Atualizado em: 02ago2024Assim como o narrador de O simpatizante e O comprometido, o vietnamita Viet Thanh Nguyen está intranquilo, às voltas com “a questão mais importante do século 20”: o que fazer? A pergunta que dá nome ao famoso manifesto político de Lênin ecoa na cabeça rachada do protagonista sem nome — “um espião, um infiltrado, um agente secreto, um homem de duas caras” — e na prosa inspirada do autor, que tenta respondê-la escrevendo dois romances com alta densidade política. No centro de ambos, o Vietnã — ou melhor, os legados do colonialismo francês na Indochina, do conflito entre comunistas do norte e republicanos do sul e das ações dos Estados Unidos na guerra que se tornou o símbolo do imperialismo americano.
O primeiro livro, lançado em 2015, rendeu ao autor o Pulitzer de ficção e acaba de ser adaptado em uma série de sete episódios na hbo. O simpatizante do título é um espião comunista, infiltrado no exército do Vietnã do Sul em Saigon, atual Cidade de Ho Chi Minh. Sua queda, em abril de 1975, é considerada o marco final da guerra, com a expulsão definitiva do aparato americano e a reunificação do país sob o comando dos comunistas em Hanói. O narrador foge no último avião que deixa Saigon. A sua missão é continuar a reportar, de Los Angeles, os planos do general de quem era o braço direito e que almeja retomar a pátria perdida.
Nguyen afirma em entrevistas que não vislumbrava uma continuação quando começou a escrever O simpatizante. Felizmente, isso mudou, e o projeto de uma trilogia começou a ganhar corpo. O comprometido, como toda “obra do meio”, precisa se equilibrar entre retomar personagens já conhecidos, apresentar novos e carregar a narrativa até um final que, se não encerra a saga do narrador de duas mentes, ao menos conclui um ciclo. O novo romance não exige a leitura do primeiro, já que o autor encontrou uma boa solução narrativa para esclarecer passagens da trama anterior sem soar artificial. No entanto, da mesma forma que a mãe do narrador dizia que ele “não é metade de algo, mas o dobro de tudo”, quem investir nos dois livros será recompensado.
A frase materna é constantemente evocada pelo protagonista. Ela tentava aplacar a angústia do menino sobre sua origem: filho de um padre francês que renegou a paternidade, ele tem na palavra “bastardo” um gatilho que o acompanha ao longo da vida. Essa herança francesa maldita ganha ainda mais peso em O comprometido, pois o narrador agora vive em Paris e tem de lidar não apenas com a comunidade vietnamita. Entram em cena outros imigrantes do antigo império colonial francês, como a Indochina e o norte da África, com destaque para os argelinos, que ainda guardavam cicatrizes da sua própria guerra de independência. Nem todos estão em busca de uma identidade; mas, no caso do nosso narrador anônimo, as perguntas “quem sou?” e “o que fazer?” fornecem matéria-prima para uma rica dialética que permeia os dois livros de Nguyen, mas especialmente esta continuação.
Nascido no Vietnã do Sul, o autor tinha quatro anos quando seus pais fugiram para os Estados Unidos
Se o enredo de O simpatizante está mais próximo do que se poderia chamar de um “romance de espionagem”, O comprometido fica mais à vontade como um “romance de ideias”. A certa altura, um personagem explica ao narrador dois conceitos de Gramsci apropriados para diferenciar as duas obras: o primeiro está para uma “guerra de movimento”, com “violência, revolução ou pelo menos confronto nas ruas”, enquanto o segundo lembra uma “guerra de posição”: “Por ideias, alianças, coalizões, novos esforços; a luta por uma nova visão”. Essa nova visão seria uma resposta à ideia de violência da descolonização que Frantz Fanon e Aimé Césaire propuseram em seus livros, lidos e debatidos pelo protagonista.
A visão de Césaire era parecida com a de Fanon em Os condenados da terra, onde a violência do colonizador originava a violência do colonizado. Talvez fosse esse o único modo de se livrar do colonizador, mas como ficava o colonizado, infectado com o presente de despedida do colonizador, a doença venérea do ódio?
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É exatamente essa a questão com a qual Nguyen vem se debatendo há anos. O autor, nascido no interior do então Vietnã do Sul em 1971, tinha quatro anos quando Saigon caiu e seus pais fugiram para os Estados Unidos. Lá, passou cerca de um ano em um campo para refugiados vietnamitas até a família se estabelecer na Califórnia. Cresceu incomodado com a representação racista dos vietnamitas pelo cinema americano, que operou a mágica de transformar uma fragorosa derrota em um mito de heroísmo e coragem. Clássicos como Platoon, Purple Hearts: Marcados pela guerra e até mesmo Apocalypse Now (tecnicamente superior, segundo Nguyen) reproduzem essa lógica.
Dialético e ferino
No terreno da literatura, de certa forma, isso já tinha sido operado. Basta ver a posição quase inconteste no cânone sobre o Vietnã que um romance como O americano tranquilo ocupou desde seu lançamento, em 1955. Nesta história mais tradicional de espionagem, Graham Greene narra um triângulo amoroso entre um jornalista britânico, um espião e uma vietnamita na década de 1950. Em meio à Guerra da Indochina, que terminou com a expulsão dos franceses, esse retrato de matriz colonial não oferece nenhuma voz relevante para os locais, meros peões no jogo entre as potências.
Nguyen, que era um fã de Greene na juventude, nunca pretendeu escrever esse tipo de romance. O frescor que O simpatizante trouxe para as narrativas de espionagem permitiu que o autor se mostrasse ainda mais à vontade para experimentações em O comprometido, que alterna narrações em primeira, segunda e terceira pessoa, e arrisca, em pleno clímax, uma amostra de teatro do absurdo, em uma homenagem ao dramaturgo romeno Eugène Ionesco.
O autor consegue dar vazão às suas reflexões por meio da voz de um narrador que não se debate com a questão da violência apenas no plano teórico, tendo sido ele vítima e perpetrador — em nome da revolução, mas também nas mãos da revolução.
Esse narrador dialético e ferino permitiu a Nguyen tratar de temas que “acharia difícil dizer pessoalmente para outras pessoas”. “As coisas que ele diz são meio desagradáveis ou muito críticas”, afirmou em entrevista à rádio americana npr. Estaria Nguyen escrevendo para o narrador, para o leitor ou para si próprio?
Não, nada pode ser feito, exceto isso, as palavras que você escreve, seu único remédio, a coisa com a qual está mais comprometido.
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