Literatura,

Guerras morais

Único romance de Philip Roth protagonizado por uma mulher põe em foco a ascensão americana entre a Depressão e a Segunda Guerra Mundial

26nov2018 | Edição #15 set.2018

“Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua própria maneira.” Poucos autores do século 20 levaram tão a sério a lição da célebre abertura de Anna Kariênina, de Liev Tolstói, quanto Phlip Roth (1933-2018). Roth tinha claro que, para se aproximar de algum tipo de verdade sobre a vida em sociedade, era necessário se embrenhar em seus conflitos particulares, escapar das histórias felizes e bem amarradas que passam por cima do que há de contraditório e doloroso, mas também irresistível, da experiência moderna ocidental.

O romance Quando ela era boa, de 1967, já tem Roth em grande forma e tratando de um período decisivo da história norte-americana: a passagem da Depressão, com o crash da Bolsa de 1929, para os anos de triunfo do pós-Guerra. 

O livro se passa em uma pequena cidade do Meio-Oeste, o que desloca o foco dos conflitos dos grupos de imigrantes que tentam se adaptar (ou rejeitar) à realidade do país, como a colônia judaica de Newark, berço do autor e cenário de muitos de seus livros, para escancarar as contradições das comunidades que nasciam com a América moderna. Aqui, não há o estrangeiro, o bode expiatório clássico. Sujeitos e projeto de nação estão se formando passo a passo, lado a lado. 

O romance é dividido em três partes. Na primeira, conhecemos três gerações da família de Lucy, a personagem principal (este é o único romance de Roth com uma protagonista mulher). O avô dela, Willard, vindo de uma cabana nas “matas do norte do estado”, tinha apenas um sonho: “ser civilizado”. De relance, vemos um ambiente de miséria e doença, simbolizado pela figura do pai dele, o bisavô de Lucy, um “homem violento e ignorante”. Nessa passagem do século 19 para o 20, Willard (assim como o próprio projeto de nação) ainda não tinha claro quais eram os atributos de uma vida civilizada, mas carregava o desejo de alcançá-la, desejo que se misturava com outro, o de escapar de suas origens. 

As responsabilidades pessoais são relativizadas, e vemos que os indivíduos têm projetos e vontades quebrados pela história

Nessa primeira parte somos apresentados ao pai de Lucy, dado a bebedeiras e sumiços e financeiramente dependente do sogro. O par simpatia/antipatia, que de início explica sogro/genro, é bagunçado quando sobrevém o momento histórico da Grande Depressão. As responsabilidades pessoais são relativizadas, e compreendemos que os indivíduos muitas vezes têm seus projetos e vontades quebrados pela história e são arrastados por incompreensíveis forças do turbulento processo de modernização das nações. 

As partes dois e três focalizam Lucy e seu relacionamento com Roy, alguns anos mais velho que ela e de família abastada, e a forma como os problemas e desajustes entre eles reverberam nas famílias de ambos.

Um projeto de país coeso nascia da vitória na Segunda Guerra Mundial. Uma batalha que, se deixou mortos, feridos e traumas também entre os norte-americanos, teve a peculiaridade de não ser travada no solo daquele país. Uma nação otimista e fortemente calcada numa moral rígida iria liderar o bloco capitalista mundial. Lucy é atravessada por esse dever moral até o último fio de cabelo, sem no entanto compreender de onde ele vem, ou qual a sua finalidade. O pai alcoólatra, a bondade do avô que sempre perdoa os erros do genro, as indecisões do marido, as infidelidades conjugais de um outro parente — nada pode ser perdoado. Essa moral rígida encontra reflexo na onda de casas pré-fabricadas que começa a se espalhar por todo o país, assustando e fascinando os personagens. A margem para o individualismo se estreita cada vez mais. 

“Homem de verdade”, “falta de caráter”, “senso de responsabilidade”, “um lar, uma família e uma educação correta!”, “deveres e obrigações”.  Este é o vocabulário com o qual Lucy acerta a todos. Mas o livro não é nenhuma fábula moral, onde o bem e o mal têm lados definidos e no fim é possível tirar lições edificantes sobre virtude e corrupção. Roth não é um moralista, é um grande romancista. Os melhores escritores norte-americanos do pós-Guerra, quando o centro cultural se desloca da Europa para a América, aprenderam com as vanguardas literárias do século em que nasceram, sem abrir mão de produzir narrativas envolventes, com personagens e situações densamente construídos. 

Roth se destaca entre seus pares porque soube melhor do que eles articular história e sujeito e ser universal ao tratar do provinciano. Já septuagenário, em uma entrevista ele avaliou sua obra citando o pugilista Joe Louis: “Fiz o melhor que pude com aquilo de que dispunha”. Assim, as famílias infelizes de Roth são sempre marcadas pelo seu tempo e local históricos. 

As vidas de avô e neta no livro nos remetem à trajetória de um dos grandes heróis dos Estados Unidos: Abraham Lincoln, o “Honesto Abe”. Sem instrução formal, Lincoln parte de uma cabana (assim como Willard) no Kentucky até a Casa Branca (o avô de Lucy se estabelece na vida alcançando um cargo público no correio local). 

Lincoln foi o melhor exemplo do sonho americano do self-made man. Honesto, abolicionista e magnânimo, foi também o primeiro presidente norte-americano a ser assassinado no exercício da função. Um tiro disparado na cabeça por um extremista (Lucy se mostra capaz de qualquer coisa para defender os valores que julga serem os únicos corretos.) Sonho e pesadelo que marcariam a história moderna do país estavam condensados na história de Lincoln, e na forma literária de Quando ela era boa

Homem de verdade

Em sua fúria moral contra o marido, que segundo Lucy nunca se comportava como um “homem de verdade”, muitas vezes ela o qualifica como “infantil”. Essa imagem sugere um fio narrativo muito sutil que, salvo engano, pode estruturar o romance. Apesar de veterano de guerra, pelo que sabemos, Roy nunca esteve no front e seu maior sofrimento durante a guerra foi ser obrigado por um superior a trabalhar por dezessete horas ininterruptas na cozinha. Era enorme o tédio dos dias jogando pingue-pongue.

O sonho e o pesadelo que marcariam a história moderna dos EUA se condensam na história de Lincoln e na forma literária de ‘Quando ela era boa’

O país que emergia na segunda metade do século 20 como potência imperialista e exigia um comportamento unificado de seus cidadãos também os infantilizava com a cultura ligeira da sociedade de consumo: fixação por esportes, cheerleaders, canção popular, o carro como fetiche e um elemento que marca esse traço da personalidade de Roy e simboliza a sociedade dos eternos crianções: fast-food. Um veterano de guerra que ao longo do livro não perde o hábito (que enfurece Lucy) de comer “biscoitos recheados”! 

O romance cifra em forma literária o que ficará mais evidente em Nascido para matar, filme de Kubrick sobre a Guerra do Vietnã, de 1987. Depois de longas cenas de treinamento militar brutal, nas quais homens são transformados em máquinas de matar, embalados por marchas militares que valorizam a bravura e a coragem, e momentos tensos de combate, o filme termina com soldados norte-americanos caminhando despreocupados à noite pelo campo de batalha, com bombas explodindo e edifícios em chamas, cantando espontaneamente uma canção muito simbólica da sociedade norte-americana moderna, “Mickey Mouse March”:

We’ll have fun, we’ll be new faces / High, high, high, high / We’ll do things and we’ll go places / All around the world / We’ll go marching / Who’s the leader of the club / That’s made for you and me / M-I-C-K-E-Y M-O-U-S-E”.

Os Estados Unidos de fato ocupariam o mundo com a sua mescla de rigidez moral e infantilização da vida adulta, e com o que há de violento e contraditório (e fascinante) nesse choque.

Quem escreveu esse texto

Tiago Ferro

É autor de O pai da menina morta (Todavia) e editor da e-galáxia e da revista de ensaios Peixe-elétrico.

Matéria publicada na edição impressa #15 set.2018 em setembro de 2018.