Literatura,
O fim da infância
Publicado em mais de vinte países, romance de Andrea Abreu transita entre as particularidades das Ilhas Canárias e os sentimentos da pré-adolescência
27maio2022 | Edição #58O encontro entre o céu e o mar, até o ponto de ser impossível distinguir onde começa um e termina o outro, é uma imagem recorrente de Pança de burro (Companhia das Letras), o primeiro romance de Andrea Abreu. A confusão dos limites do horizonte se reflete na construção da voz da narradora, natural das Ilhas Canárias — assim como a autora do livro —, que vive ao lado de uma grande amiga o fim da infância e o limiar da adolescência. Uma graça especial dessa história sobre desfechos e inícios é que os tropeços e as travessuras de duas meninas excêntricas divertem enquanto transmitem um sentido mais geral do amadurecimento.
A temporalidade do romance é circunscrita de modo tão preciso quanto os limites espaciais do bairro onde as duas protagonistas moram: começa em junho e termina em setembro. Durante o período das férias de verão, a narradora e a sua amiga Isora comem até passar mal, brincam de boneca, experimentam o frio na barriga quando se “esfregam” em objetos e devaneiam com o momento em que finalmente poderão tomar as próprias decisões.
A narradora dá à história um ritmo rotineiro, contrabalançando as emoções que costumam caracterizar a puberdade com o tom repetitivo dos hábitos, reforçado pelo uso recorrente de apelidos para nomear os personagens. A habilidade da escritora, e da tradutora Livia Deorsola, de construir uma cadência fluente cria uma perspectiva narrativa inconfundível, atenta às alegrias cotidianas enquanto é capaz também de relatar aflições geralmente disfarçadas na vida adulta, como o medo de não ser digno de amor, com a desinibição da infância.
As figuras de linguagem desempenham um papel interessante na construção desse olhar. Às vezes, as comparações fazem uma ponte entre a vastidão do mundo e o léxico conhecido: “Começavam a nascer da terra as primeiras casas do bairro junto aos pinheiros das saias do vulcão, o vulcão, como o chamava a vovó, e dizia as saias, como se o vulcão fosse a Shakira”. Em outros momentos, são recursos para representar o caráter imaginativo e levemente maldoso das crianças — “Sobrancelhas tão grossas que parecia que ele tinha duas taturanas grudadas na cara com fita adesiva” — ou as maneiras como elas se apropriam das palavras dos adultos: “Papai sempre dizia que eu não tinha sangue nas veias, que eu não tinha sangue nas veias porque era mais lerda que uma repartição pública”.
Geral e particular
A atmosfera do começo dos anos 2000 é delineada por meio de algumas referências culturais que compõem o universo da narradora, como o conhecimento rudimentar da internet. Esse incipiente mundo globalizado eventualmente se choca com a dinâmica de um bairro das Ilhas Canárias, arquipélago espanhol localizado a oeste da costa africana, onde os conselhos das avós se misturam aos parâmetros ampliados da nova geração. Isora, por exemplo, sempre chama a avó de bitch, justificando o apelido com a explicação de que a palavra estrangeira significa “vó”.
Quando descreve as casas de veraneio do local, onde sua mãe trabalha como faxineira, a narradora diz se sentir separada daqueles espaços por “uma parede enorme de plástico transparente de cozinha”. Já Isora lhe parece “famosa” porque sua avó é dona de um mercadinho no bairro onde vivem. A escala de valor da menina, como costuma ser na infância, organiza a percepção do mundo de acordo com os ofícios e outras características dos adultos conhecidos, o que dá a ver as cisões entre a vida cotidiana e a turística do lugar.
‘Pança de burro’ traz alegria ao lembrar como é bom encontrar companhia para observar o mundo
Mais Lidas
Como moram em uma parte alta da ilha e os adultos estão sempre ocupados, a praia é inacessível para as meninas. Para contornarem a interdição, elas fantasiam com o cenário que consideram ideal para a vida de gente grande: tomar sol na beira do mar, “com as pernas depiladas e sem bigode”. Uma virtude do tom irreverente da narração é a capacidade de transitar entre as especificidades locais e os sentimentos característicos da pré-adolescência. Assim, a impossibilidade de aproveitar as paisagens da cidade encontra a pressa para que o futuro chegue logo junto com a liberdade de fazer o que se bem entende.
Sintonia das amizades
Enquanto a narradora sempre teme tomar uma bronca dos pais, Isora não tem medo de dizer não, sabe conversar com os adultos e experimenta café e molhos picantes. A composição das personagens com traços de caráter tão diversos retrata a amizade segundo os modos como personalidades opostas se combinam e se chocam. Ao mesmo tempo, a história dá conta de representar algumas das determinantes transformações desse confuso momento da vida, como as transições de referências de comportamento, que aos poucos deixam de ser exclusivamente aquelas ensinadas dentro de casa.
O vínculo também apresenta a narradora a afetos entrelaçados: a admiração confundida com a inveja, a intimidade misturada à atração, a confiança cega atribuída à amiga e a vontade de andar por conta própria. Os sentimentos ambivalentes e a tranquilidade que a presença de Isora desperta são os motores das aventuras e dos desentendimentos, vividos com a intensidade típica de uma fase em que a transitoriedade ainda está em processo de assimilação.
O romance tem a força de transmitir a sintonia das amizades de infância, quando os limites entre o eu e o outro são mais porosos e a curiosidade ainda não passou pelos cortes das hesitações. Esse é um aspecto comovente desta história que consegue ser bonita embora o verbo “cagar” apareça com bastante frequência: junto à narrativa das duas amigas e ao registro dos fatos irreversíveis do amadurecimento, Pança de burro traz alegria ao lembrar como é bom encontrar uma companhia para observar o mundo e fazer troça das tantas coisas estranhas que existem por aí.
Matéria publicada na edição impressa #58 em fevereiro de 2022.
Porque você leu Literatura
Sangue, tesoura e cola
Com Guerra – I, Beatriz Bracher escreve uma história original da Guerra do Paraguai
DEZEMBRO, 2024