Literatura japonesa,

Infinito particular

Romance japonês se debruça sobre o corpo feminino e examina a condição da mulher e da maternidade

19maio2023 | Edição #70

Traduzida para mais de trinta idiomas, vencedora de prestigiosos prêmios no Japão, finalista do Booker Prize e indicada para o National Book Critics Circle Award: quem chega a Mieko Kawakami por esses feitos talvez tenha dificuldade em imaginar que seu sonho, ao se mudar de Osaka para Tóquio, era ser cantora pop. Tornar-se escritora aconteceu quase por acaso, depois do sucesso do blog em que publicava poemas e pequenos ensaios com uma voz dissonante das masculinas que predominavam no país nos anos 2000. Peitos e ovos, que introduz aos leitores brasileiros a obra de Kawakami em tradução de Eunice Suenaga, foi um dia apenas entradas desse blog. Em 2008, a primeira parte do que hoje é um romance de quase quinhentas páginas foi publicada como novela e recebeu o prêmio Akutagawa; uma década depois, antes da tradução para o inglês, a autora decidiu ampliar as vivências de sua protagonista Natsuko e incluiu questões suscitadas pela experiência de ter se tornado mãe.

Tais transformações se deixam ver no livro: cada parte parece ser um romance diferente, com seu próprio ritmo, ligada uma à outra quase que apenas pela protagonista. Ainda assim, a junção funciona. Na primeira parte, “Verão de 2008”, Natsuko é uma aspirante a escritora que, como a autora, se mudou de Osaka para Tóquio, começou a trabalhar ainda menor de idade e foi criada pela mãe, praticamente sem pai. Mas as semelhanças entre vida e obra não passam muito daí: não se trata de um romance autobiográfico convencional, ainda que ambas, Mieko e Natsuko, tenham trabalhado na cozinha de um bar onde suas mães eram hostess, figuras que serviam e escutavam fregueses nas noites japonesas.

O enredo da primeira parte se passa nos poucos dias em que Makiko, a irmã mais velha de Natsuko, vai visitá-la em Tóquio acompanhada da filha. O objetivo da viagem é uma consulta médica para a realização de uma mamoplastia: Makiko está insatisfeita com seus seios minúsculos e seus mamilos escuros e protuberantes depois de amamentar. As descrições não só de seus seios, mas do corpo feminino em geral, chamam a atenção por não objetificá-lo, como quando Natsuko observa a irmã em uma casa de banho:

Olhando de trás, suas coxas estavam nitidamente afastadas uma da outra, e quando ela arqueava as costas, a espinha dorsal e as costelas, e também a bacia, na parte superior das nádegas, ficavam ligeiramente visíveis.

A narradora, ela mesma alguém que sente repulsa pelo ato sexual e pode ser descrita como assexual, reafirma essa postura. Em um mundo atolado pela nudez hipererotizada das mulheres, isso é quase uma inauguração.

Midoriko, a filha de Makiko, passa um certo dia a se recusar a falar. A garota de doze anos está lidando com as transformações de seu corpo e com as queixas da mãe sobre os seios depois de amamentá-la; sabemos da culpa que sente pelo que escreve em seu diário. O questionamento da legitimidade da própria vida por parte de quem nasce, ampliando a discussão da maternidade para o desejo de existir dos filhos, é, além da narradora, outra ligação com a segunda parte do livro.

A relação entre mulheres e seus corpos e a estranheza de se ter um corpo é testada sob vários prismas

Em “Verão de 2016 a verão de 2019”, Natsuko já é uma escritora reconhecida pela publicação de um romance que fez algum sucesso. Às voltas com as dificuldades de escrita do segundo, vivendo de produzir algumas resenhas e textos periódicos, ela parece ser uma pessoa solitária, que não tem iniciativa de marcar encontros com amigos embora os aceite passivamente. Por meio de suas conversas com antigas colegas de trabalho, com uma editora interessada em sua escrita e com uma escritora já bem estabelecida no meio literário, temos acesso a diversas facetas da relação das mulheres com o próprio corpo e com os homens, estes quase sempre ausentes, exploradores ou abusivos. Os diálogos, em alguns momentos, soam perto de didáticos, o que por vezes chega a interferir no ritmo do romance.

Já as descrições — um ponto forte — desestabilizam a visão habitual, fugindo na maior parte das vezes de metáforas gastas, beirando a estranheza, como em “O céu se elevava tão alto que parecia abanar a mão para nós” ou em “O intervalo do piscar da luz lembrava o respirar silencioso de alguma criatura”. Essas descrições entrecortam o enredo em momentos estratégicos, definindo sua cadência e o fazendo pulsar com sensibilidade, o que o salva de quase todos os momentos em que beira o pedagogismo. Quando consegue articular bem os temas que pretende discutir na própria engrenagem, a narrativa galopa, fazendo esquecer que há páginas sendo viradas, transportando a um Japão contemporâneo e vivo.

Ainda que a narrativa seja primordialmente realista, há passagens oníricas, bem colocadas em momentos de impasse da protagonista, como quando Natsuko se incomoda com um homem trans frequentando a ala feminina de uma casa de banhos ou quando encontra um possível doador de esperma que se vangloria do seu sêmen.

O corpo e a vida

“‘Por que nasci? Por que preciso continuar vivendo?’ Eu era uma criança que só pensava nessas coisas”, diz Konno, uma das colegas de Natsuko. A narradora entende: ela mesma já se sentiu um peso para a mãe, mas passa a se ver num dilema quando se dá conta de que também quer ter um filho. Avessa a sexo, Natsuko começa a pesquisar a possibilidade de engravidar por inseminação artificial com sêmen de doador (IAD), prática cuja parca regulamentação está restrita, no Japão, a mulheres casadas, e casadas apenas com homens.

Natsuko procura saber da experiência de mães que tiveram seus filhos concebidos por IAD, mas logo depara com o relato de pessoas nascidas por esse método e que souberam da verdade quanto à própria origem só muitos anos mais tarde, um segredo revelado por acaso ou porque o pai que acreditavam ser o biológico estava prestes a morrer. Yuriko Zen é uma dessas “partes interessadas”, ou seja, uma das pessoas concebidas por IAD. Natsuko a conhece quando passa a frequentar palestras sobre o tema e a escuta falar alegoricamente sobre a dor de viver, em uma das passagens mais impactantes do livro, da qual saímos com a pergunta se gerar um filho não seria um ato egoísta dos pais.

A partir do questionamento de quem teria a culpa pelo nascimento de uma pessoa, chega-se à pergunta pelo sentido da própria vida, passando pela escolha individual de cada mulher sobre ser ou não mãe. “O imprevisto de ter filhos” não aconteceu na vida de Ryoko Sengawa, a editora que se aproxima de Natsuko, por exemplo; tentando dissuadi-la da ideia de engravidar, Sengawa chega a afirmar que “escritores grandiosos não têm filhos”. Para Makiko, irmã da protagonista, ter filhos ou não é algo que estaria sob o domínio de Deus; para Natsuko, a possibilidade de engravidar gera uma “sensação de onipotência”.

A relação entre as mulheres e seus corpos e a própria estranheza de se ter um corpo é testada sob vários prismas. Midoriko, a sobrinha de Natsuko que se recusa a falar, escreve em seu diário um episódio em que entrou em um brinquedo para controlá-lo:

Mamãe só conseguia ver o Robocon, então para ela só havia o Robocon. Mas eu estava dentro dele. Mesmo quando saí dele, lembro que fiquei com uma sensação estranha pelo resto do dia. […] Não sei como vim parar aqui, mas estou dentro do meu corpo, vivo nele, e ele se transforma cada vez mais, independentemente da minha vontade.

Olhos para o universo

Os olhos de Midoriko doem, os olhos de Natsuko se incomodam. A garota escreve no diário:

Ultimamente fico com dor de cabeça quando olho para as coisas. […] Por que várias coisas entram pelos olhos? Por onde saem as coisas que entram pelos olhos? Como elas saem, como palavras ou como lágrimas? […] Ao pensar no meu livro que, se continuasse daquele jeito, não saberia quando poderia concluir, tive a sensação de que um líquido preto começava a se acumular na cavidade do fundo dos meus olhos, e tudo parecia afundar na escuridão.

O olhar e a escrita se comunicam: as palavras são convocadas, e às vezes interrompidas, pelo que uma mulher vê do mundo. A relação entre mundo e corpo se desestabiliza com base nesse novo olhar: “A cozinha que eu não só estava acostumada a ver, mas era praticamente uma extensão do meu corpo, estava esbranquiçada e parecia ainda mais velha”.

Os acontecimentos e a presença de alguém que escreve mudam o que, mesmo incômodo, era familiar. É como se o romance acendesse a luz e conseguíssemos, então, enxergar mais claramente o que oprime uma mulher atualmente, no Japão e no mundo. É curioso e provavelmente não casual que o ápice da primeira parte do livro, uma cena estranha, bonita, e — por que não? — épica, se passe justamente na cozinha, o lugar em que os dias de muitas mulheres são apagados pelo cotidiano do trabalho doméstico. Mieko Kawakami, no entanto, não se atém à cozinha e transita até o universo. 

Aizawa, o primeiro das “partes interessadas” no processo de IAD que Natsuki conhece e para quem a revelação da verdade quanto à própria origem foi traumática, conta que o homem que o criou — e que reluta agora em chamar de pai — o apresentou às Voyager, sondas espaciais que navegam incessantemente, carregando no ventre registros capazes de guardar, da Terra para o espaço, a história da humanidade. Isso volta muito engenhosamente depois.

O romance acende a luz e conseguimos enxergar mais claramente o que oprime uma mulher atualmente

Natsuko Natsume costuma ser perguntada se seu nome é um pseudônimo: não, responde com paciência. O ideograma “natsu” significa verão. As duas partes do livro se passam e são designadas por verões, como se uma fosse o eco da outra, ao mesmo tempo em que duplicam a protagonista em duas vidas, uma a superação da outra. “Tive a ilusão de que estava havia vários anos num verão sem fim”, diz na primeira parte; na segunda, questiona:

Quantos verões já vivi? […] Obviamente era o mesmo número de verões equivalentes à minha idade, nem havia necessidade de pensar, mas tive a impressão de haver um outro número, um número correto, diferente da minha idade, em algum lugar do mundo.

O catártico final, um elogio às mulheres e à humanidade, parece colocar na equação dos verões de Natsuko esse outro tempo, como se cada nascimento, inclusive o dela, fosse um acerto de contas não só com o futuro, mas também com o passado.

Alguma personagem divaga em Peitos e ovos sobre a possibilidade de uma gravidez ser mantida em laboratório, apesar de ser muito difícil que a ciência chegue até lá. Talvez o território divino, aquele jamais suplantado por tecnologia alguma, esteja no âmago do corpo de uma mulher. Deus talvez seja o útero. Mesmo vazio, em silêncio, em sua recusa de condescender com a humanidade.

A editoria de Literatura japonesa tem o apoio da Japan House São Paulo.

Editoria com apoio Japan House São Paulo

Desde 2019, a Japan House São Paulo realiza em parceria com a Quatro Cinco Um uma cobertura especial de literatura japonesa, um clube de leitura e eventos especiais.

Quem escreveu esse texto

Natalia Timerman

Psiquiatra e escritora, é autora de Copo vazio (Todavia).

Matéria publicada na edição impressa #70 em maio de 2023.