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Histórias que cruzaram oceanos

Publicados há mais de 120 anos, contos tradicionais japoneses iluminam memórias que se perderam entre gerações

01out2024 • Atualizado em: 03out2024 | Edição #86 out
Ilustrações de Janaina Tokitaka (Divulgação)

São tantas as histórias que me tornaram mais próxima daquilo que não sou. Histórias que me atravessaram e que me transformaram. Algumas, que se repetiram à exaustão, me convenceram por um período de que aquela era a forma correta de estar no mundo, nesse processo de colonização cultural em que estamos tão emaranhados no Brasil.

Ler contos tradicionais japoneses, escritos por uma mestiça de pai japonês e mãe inglesa, e publicados há mais de 120 anos, pode proporcionar diferentes vivências no país que possui a maior comunidade de ascendência japonesa fora do Japão. O próprio título do livro, Contos de fada japoneses, já causa um estranhamento sobre o deslocamento dessa antologia: contos de fadas não seriam aqueles contos folclóricos de origem francesa, com fadas, duendes e outras figuras daquela mitologia europeia? Mas estes contos populares japoneses, assim como sua autora, Yei Theodora Ozaki — e nós, brasileiros —, também carregam grande influência europeia em sua estrutura.

Partem da matriz dos contos tradicionais de Andersen, Grimm e Perrault, em uma estrutura familiar, contada a gerações de brasileiros. Mas se a estrutura é reconhecível, os nomes e os personagens que se apresentam só seriam identificados por aqueles que têm um interesse específico nessa cultura ou conseguiram manter vivas as narrativas orais familiares.

Aquilo que a história falhou em nomear, aquilo que sofreu apagamento, os contos iluminam

São núcleos familiares que conseguiram desfrutar, na intimidade de seus lares, histórias que viajaram por oceanos com seus avós. Que conseguiram superar o preconceito e a opressão sofrida por descendentes de japoneses durante a Segunda Guerra, resistindo à proibição das línguas asiáticas desse período. Que enxergaram e perpetuaram a beleza de si diante da pressão que sofremos da suposta beleza universal da história única. Quantas dessas famílias não reconhecerão Momotaro, ou a história do Menino Pêssego, nas narrativas contadas por seus avós? Ou não terão a memória afetiva reavivada pela magia do Meu Senhor Saca de Arroz?

Pois se muitos se reconhecem nos personagens, palavras e afetos de infância, outros permanecem no escuro do silêncio das palavras que se perderam entre gerações. Eu, que carrego o sobrenome Nakano, não me reconheço nesses nomes. Não sei quem são esses personagens. Nos anos 80 e 90, as mitologias apresentadas no currículo escolar à infância paulistana eram primordialmente uma: a grega. As personagens, ora Perrault, ora Disney.

Heranças

Durante a leitura dos Contos de fada japoneses, por baixo dessa superficialidade artificial, algo emerge de profundezas escuras para o campo das palavras que narram valores e maneiras de ser que, sim, eu reconheço. Estou ali, num senso de dever profundo, talvez desnecessário, como o do personagem Caçador Feliz, o que me proporcionou ao longo da vida tanta dor e também tantas realizações. No respeito aos meus pais, que me torna menina obediente, como no conto “A história de Urashima Taro, o pescador”. Na resiliência da imperatriz Jokwa. Percebo então pela luz das palavras tantas heranças que carrego sem saber de uma cultura que aparentava tão distante, mas que por fim constitui as bases de meu ser.

Daí a beleza desse livro e a importância de contos tradicionais: aquilo que a história falhou em nomear, aquilo que sofreu apagamento pelos mais variados motivos, mas persiste em nós, os contos iluminam. E aquelas dentre tantas histórias apagadas me permitem me tornar mais próxima de mim mesma.

“Que nossas histórias continuem sendo contadas”, diz a organizadora Janaina Tokitaka na dedicatória. E que nos permitam nos aproximar das muitas possibilidades de ser e estar no Brasil.

Editoria com apoio Japan House São Paulo

Desde 2019, a Japan House São Paulo realiza em parceria com a Quatro Cinco Um uma cobertura especial de literatura japonesa, um clube de leitura e eventos especiais.

Quem escreveu esse texto

Renata Nakano

É idealizadora do Clube Quindim, clube de assinatura de livros infantis.

Matéria publicada na edição impressa #86 out em outubro de 2024. Com o título “Histórias que cruzaram oceanos”