Literatura israelense,

O lugar do outro

Ayelet Gundar-Goshen cria mais um enredo instigante com temáticas urgentes como racismo, antissemitismo e imigração

27maio2022 | Edição #58

Um garoto cai morto em uma festa de adolescentes. Um garoto negro. Suspeita-se que a tragédia tenha sido, além de um acidente com drogas, provocada por alguém. Estamos nos Estados Unidos, em Palo Alto, uma cidade pacífica para a qual imigraram os Schuster a trabalho, mas também para fugir da violência imanente de Israel — uma vida em que alarmes antibomba podem soar a qualquer momento e a passagem pelo Exército deixa marcas; uma vida sempre pronta a se defender, tanto que pode acabar por transformar a defesa em ataque. Mas não nessa outra vida, nesse lugar pacífico, em que não caberia pensar nesses termos — defesa, ataque —, muito menos em que um menino que fala hebraico, filho de israelenses, pudesse matar Jamal Jones, um garoto negro. Acontece que Adam Schuster, filho de Michael e Lilach, é o principal suspeito. Quem narra essa história é Lilach, sua mãe.

Os problemas da família em torno da qual gira Outro lugar se resumiam a certa retração do filho único — interessado demais em química —, à distância de Israel e dos familiares e aos dias desocupados de Lilach, que deixara a carreira acadêmica e mitigava a sensação de inutilidade sendo voluntária num residencial de idosos. Mas um atentado com uma morte numa sinagoga faz se armarem as defesas quase instantaneamente, como se o lugar de vítima estivesse sempre prestes a ser ocupado, como se fosse claro desde sempre quem é vítima e quem é algoz. Reforça-se a segurança, e parte desse movimento é a formação de um grupo de defesa pessoal para garotos, entre os quais está Adam.

Na distribuição cotidiana de papéis, os negros são vítimas de ocuparem de antemão o de algoz

Surge então Uri Ziv, que tivera uma carreira brilhante no Exército israelense e é alçado a mentor do grupo. Os pais ficam satisfeitos ao ver os filhos longe das telas e observam neles um novo ímpeto de vida, especialmente em Adam. Uri se aproxima da família Schuster quando a suspeita pela morte recai sobre o garoto, amparando-os emocionalmente. Enquanto isso, Lilach tenta se aproximar de Anabella Jones, a mãe órfã de filho, mas logo se evidencia que não são emparelháveis as aproximações com Uri e com Anabella. Esta trabalha como camareira em um hotel e não pode ocupar o sofá da sala de Lilach com naturalidade; quando ela traja preto, a narradora não distingue se se trata de uma roupa de trabalho ou de luto.

As diferenças ressaltam, no entanto, uma importante semelhança: tanto Uri como Anabella, cada um a seu modo, apontam para o fato de que, no fundo, Lilach e Michael podem não conhecer verdadeiramente seu filho, situação que cria uma insegurança mais que metafórica: desestabiliza os fundamentos do que deve ser considerado familiar e do que deveria ser considerado inimigo. É nesse contexto que Lilach pondera acerca de Adam:

“Como nas meticulosas revistas com raio X no aeroporto Ben Gurion, quando se quer verificar se numa sacola de aspecto inocente não se esconde uma bomba, assim eu observava o rosto dele toda noite, procurando um sinal. […] Alguém zombou de você, menino? Alguém o magoou? Tudo isso eu buscava no rosto dele, buscando uma resposta a todas essas questões, sem ter feito uma única vez a pergunta: E você, garoto, zombou de alguém? Magoou alguém?”.

As perguntas se misturam (e o enredo se complexifica) quando a mãe descobre quase simultaneamente a possibilidade de o filho ser algoz e vítima. Supostos assédios que ele sofreu por parte de Jamal vêm à tona sem que ele nunca tenha dito algo a respeito, mas não chegam a se confirmar, pois outras pistas vão sendo dispostas com mais de uma interpretação possível.

Em Outro lugar, gestos carregam significados que ultrapassam a si mesmos, maiores e anteriores, como na realidade: quando se nasce, afinal, chega-se a uma história já em andamento, ainda mais quando se é judeu ou negro. Ao refletir acerca da adoção de seu marido quando criança, Lilach diz não se tratar de uma, mas de duas histórias. A afirmação cabe ao romance como um todo, magistralmente arquitetado para que os lugares cristalizados dessas histórias se misturem, mais que se invertam, fugindo de maniqueísmos. E se os judeus portam como um estandarte a história (legítima) de opressão de seu povo, isso, no livro, acaba por evidenciar mais uma vez que o estandarte de opressão dos negros ainda não foi suficientemente levado em conta e que, na distribuição cotidiana, silenciosa e invisível de papéis, eles costumam ser vítimas de ocuparem de antemão o papel de algoz. “À noite”, diz Lilach sobre Jamal, já morto, “eu teria medo de você.”

Negativos

Quarto romance de Gundar-Goshen, Outro lugar a cristaliza como narradora exímia, capaz de conjugar enredos instigantes, linguagem precisa e refinada e temáticas urgentes no mundo contemporâneo, como racismo, antissemitismo e imigração. Talvez seu trabalho concomitante como psicóloga clínica contribua para o que já se tornou sua marca no acesso a esses temas: abarcar-lhes a complexidade ao mesmo tempo que desperta questionamentos íntimos por meio de bem elaborados estratagemas literários.

Assim se dá em Outro lugar, que abre com uma denegação: não é verdade que Adam matou Jamal, sua mãe diz; e ela não se chama Lila, ainda que os americanos pronunciem seu nome assim. Instaurando já de cara no romance essa inversão, a de que ele vai tratar, mais do que o que profere, do que se costuma calar, Gundar-Goshen oferece uma espécie de mapa de acesso feito dessa negatividade mesma, um negativo que guarda uma verdade oposta àquela que se vê habitualmente na fotografia dos dias comuns. A partir de então, já de posse desse mapa, o leitor pode percorrer a cidade tranquila dos Estados Unidos com outros olhos, e também a relação entre Estados Unidos e Israel, entre ambos e o resto do mundo, e entre judeus e não judeus, brancos e negros.

Conforme percorremos essa trajetória narrativa feita de avessos, suspendemos as certezas que garantiam a cada coisa seu lugar na realidade. As noções de conforto e segurança, seladas pelos cremes dermatológicos aplicados por Lilach e pelas séries a que assiste com o marido, desajustam-se de seus lugares habituais. Quando um treinamento militar de jovens deixa de ser brincadeira? Quando a preocupação vira paranoia? A costura mal-ajambrada de um mundo injusto fica à mostra, esse mundo que é e continua sendo o nosso.

Essa editoria tem apoio do Instituto Brasil-Israel.

Quem escreveu esse texto

Natalia Timerman

Psiquiatra e escritora, é autora de Copo vazio (Todavia).

Matéria publicada na edição impressa #58 em fevereiro de 2022.