Literatura israelense,

Dois tiros na paz

Biografia de Yitzhak Rabin ilumina a tragédia do presente entre israelenses e palestinos e as difíceis perspectivas para o futuro

01ago2021 | Edição #48

Yitzhak Rabin entrava no seu carro depois de uma noite e tanto. O comício na praça em Tel Aviv — que depois seria rebatizada com seu nome — era em defesa dos Acordos de Paz de Oslo e havia atraído mais de 100 mil pessoas, uma multidão muito maior do que a esperada pelos organizadores. O auge fora a estrela pop Miri Aloni cantando “Shir LaShalom” (Uma canção para a paz), o hino do movimento pacifista israelense, e Rabin, microfone na mão, fora do tom e acanhado, tentando acompanhá-la.

Cercado de seguranças, Rabin já havia descido do palanque e podia ver a porta aberta de seu carro. Mas, alguns metros atrás dele, o judeu ultranacionalista Yigal Amir segurava uma pistola Beretta no bolso direito da jaqueta. Foram dois tiros no premiê — um no abdome, outro no peito. Uma hora e meia depois, autoridades médicas anunciaram: o primeiro-ministro, que ousara tentar fazer a paz com Yasser Arafat, estava morto.

E se os seguranças tivessem dobrado a teimosia de Rabin para fazê-lo usar um colete à prova de bala no comício? E se tivessem evitado a falha na segurança, barrando a tempo o terrorista? E se Rabin não tivesse morrido? E se os Acordos de Oslo tivessem avançado por todas as fases previstas, incluindo a criação de um Estado Palestino em paz com Israel? E se com mais alguns apertos de mão entre Rabin, Shimon Peres e Arafat, sob o olhar de Bill Clinton, o rio de sangue entre israelenses e palestinos acabasse definitivamente aterrado? O magnicídio de 1995 enseja múltiplos “e se”. São exercícios contrafactuais que partem de uma mesma constatação: a figura de Rabin foi decisiva para chegar aos Acordos de Paz de Oslo; depois, sua súbita ausência foi uma das causas do colapso do processo de paz.

A História é feita de processos de longo prazo, de evoluções estruturais e sistêmicas, de massas anônimas que fazem revoluções e guerras. Mas alguns indivíduos — líderes, no sentido pleno da palavra — por vezes a alteram drasticamente. No Oriente Médio contemporâneo, Rabin foi um deles. Não fosse o terrorista na praça lotada, provavelmente poderia ter sido ainda mais.

A vida (e morte) de Rabin pode nos ajudar a entender os descaminhos da solução de dois Estados, até sua situação atual, de quase inviabilidade completa. O livro de Itamar Rabinovich — Yitzhak Rabin: uma biografia, traduzido pelo professor Samuel Feldberg e por Debora Fleck, em uma parceria entre a editora Ayllon e o Instituto Brasil-Israel (cujo conselho eu integro) — cumpre esse papel, na forma de um relato íntimo, rigoroso e conciso do premiê trabalhista.

Tímido e introspectivo, Rabin destacou-se por sua capacidade de planejamento e execução

Íntimo, pois Rabinovich, além de historiador e ex-presidente da Universidade de Tel Aviv, foi uma figura particularmente próxima a Rabin, servindo como seu embaixador em Washington e negociador principal com a Síria. O autor tem um lado claro na história do primeiro-ministro, que ele explicita desde as primeiras páginas.

Mas seu rigor intelectual o afasta do terreno da apologia ou de qualquer construção mitológica. Rabinovich fala sobre como o jovem Rabin participou da expulsão de palestinos da vila de Lydda, durante a guerra de 1948. Ou de suas decisões, no primeiro mandato como premiê (1974-77), diante do início da guerra civil libanesa — as quais deram aval à ocupação síria do Líbano. Outro biógrafo talvez tivesse cavoucado mais esses episódios controversos, mas Rabinovich os apresenta, juntamente com uma visão crítica de outros momentos decisivos da carreira do ex-chefe.

Burocrata e estrategista

Rabin tinha uma característica que o difere de todas as outras grandes figuras históricas de Israel: sua personalidade. Ele era introspectivo, por vezes quase soturno, um tipo quieto que sonhava ser engenheiro hidráulico, fumava demais e penava para falar em público quando fazia campanha. À sua volta sempre estiveram figuras muito mais carismáticas, cheias de cores fortes. No Exército, entre seus comandantes e comandados, ele conviveu com Moshe Dayan, o herói de tapa-olho da Guerra dos Seis Dias, e Ariel Sharon, o soldado radical e rebelde que ouriçava os ultranacionalistas. Na política, precisou ganhar espaço debaixo da geração que fundou Israel, incluindo Ben Gurion e Golda Meir, a quem sucedeu como premiê em 1974, e acabou derrotado por Menachem Begin, o ex-terrorista que levou a direita ao poder pela primeira vez. E, claro, ao longo de toda a sua vida pública, sempre teve por perto Shimon Peres: primeiro, como sua nêmesis dentro do aparato de segurança e do trabalhismo israelense; depois, como seu grande parceiro no retorno da esquerda ao poder e no processo de paz com os palestinos.

Portanto, não foram seus dotes retóricos ou sua grandiloquência que o levaram ao panteão do Estado de Israel. Os motivos foram outros. O primeiro deles, ainda no campo da personalidade, foi sua capacidade de planejamento estratégico e execução, na guerra e na política. Em momentos de crise ou de busca de estabilidade (os quais não eram raros em Israel), o burocrata tímido e eficiente emergia como uma alternativa especialmente atrativa. O segundo foi sua trajetória forrest-gumpiana nas cinco primeiras décadas de vida do Estado de Israel. Rabin foi o primeiro líder israelense que não havia nascido na Europa, um “sabra” de verdade, e desde muito jovem esteve no epicentro do poder e da história de Israel. No entanto, ao contrário do personagem de Tom Hanks, ele não foi mero espectador, por acaso, dos grandes eventos à sua volta. Ao longo de sua vida, Rabin foi a própria encarnação das grandes questões estratégicas de Israel — o fio condutor do livro de Rabinovich — e ajudou a trilhar os destinos do país.

A guerra como formação

A primeira cena de sua biografia política é o conflito de 1948 — que israelenses chamam de Guerra da Independência, e palestinos, de Nakba (A catástrofe). Rabin, com 26 anos, teve uma posição de destaque e comando em algumas das principais campanhas da guerra, incluindo a luta por acesso a Jerusalém. E, quando as armas silenciaram, ele viveria intensamente uma das principais questões da construção do Estado de Israel: como criar uma só força do Estado judeu, em vez de vários grupos armados com ideologias distintas. Rabin era do Palmach, uma tropa de elite da milícia Haganah, que mantinha uma cultura e uma estrutura de comando próprias. Ben Gurion, o líder da independência de Israel, temia que a divisão entre grupos armados levasse o jovem Estado à guerra civil. Em sua visão, o militar virtuoso na formação do Estado de Israel era aquele que havia servido junto aos britânicos, contra o nazifascismo, e agora poderia ajudar a construir Forças Armadas “de verdade” em Israel.

Na busca por homogeneizar e unificar as forças israelenses, Ben Gurion derrubou boa parte do comando do Palmach, além de caçar grupos de terroristas, como o Irgun. Quando Rabin, já um oficial de prestígio, participou de um comício ligado ao Palmach, o primeiro-ministro se revoltou (a relação entre os dois jamais seria plenamente restaurada). Mas Rabin foi um dos poucos a fazer a transição da milícia às forças profissionais.

Outra questão estratégica central que ele viveu, ainda no fim dos anos 40, tinha a ver com a forma de lidar com os países árabes. Embora não fosse um dos principais negociadores, Rabin participou do diálogo de armistício após a guerra de 1948. Da negociação ele tiraria uma conclusão para a vida: Israel deveria evitar a diplomacia com um bloco de países árabes, pois nessas circunstâncias as posições mais radicais do outro lado sempre prevaleceriam sobre as mais moderadas. A lição o acompanharia até as negociações dos anos 90, quando ele continuava a objetar a participação de países como a Síria nas rodadas de diálogo entre israelenses e palestinos.

A questão nuclear

Em outros pontos cruciais do debate estratégico israelense, a posição de Rabin mudou com o tempo. A questão nuclear foi uma delas. Até a primeira metade dos anos 60, ele discordava da ideia de que Israel deveria desenvolver capacidade atômica própria — algo que, segundo temia, poderia atrapalhar os planos de adquirir poder militar convencional de alta qualidade. Do outro lado do debate, havia um jovem e ambicioso funcionário do Ministério da Defesa de nome Shimon Peres. Rabin, porém, acabou persuadido.

Quando Israel derrotou cinco países árabes em seis dias, em 1967, Rabin era o chefe do Estado-Maior, o posto militar mais alto do país. Ele colheria os louros da vitória pelo resto de sua vida, identificado como o general-estrategista que ajudara na façanha.

Do alto-comando, Rabin entrou no campo da política — mais especificamente, da diplomacia. Ele se tornou embaixador de Israel em Washington em um momento-chave: a relação estreita com os Estados Unidos convertia-se em um dos principais eixos estratégicos do Estado judeu. Rabin conseguiu ajudar a convencer os governos de Lyndon Johnson e, depois, de Richard Nixon de que Israel era um dos principais aliados de Washington na Guerra Fria no Oriente Médio. Mesmo após o fim do confronto bipolar, esse nó entre os dois países jamais seria totalmente desatado.

O passado remoto

Na volta de Washington, o acaso favoreceria a ascensão de Rabin ao topo do governo. Israel venceu a Guerra do Yom Kippur, em 1973, mas a incapacidade em antecipar o ataque-surpresa, assim como o trauma das derrotas nas batalhas iniciais, na Península do Sinai e nas Colinas do Golã, minaram a velha guarda do trabalhismo israelense — a começar pela própria primeira-ministra, Golda Meir. General de 1967, com a experiência acumulada da Embaixada em Washington e distante da debacle de 1974, Rabin viu o caminho aberto para assumir o comando da esquerda. Ele serviria como primeiro-ministro até 1977 e ocuparia vários postos ministeriais até seu retorno à chefia do governo, em 1992.

Rabinovich espera por um novo Rabin, mas a roda da História deixou os anos 90 em um passado remoto

Em sua última fase política, Rabin tentou a diplomacia com a Síria e — o principal — com os palestinos. Como militar e político, ele havia se oposto à expansão de assentamentos judaicos em áreas da Cisjordânia e na Faixa de Gaza, que, segundo acreditava, jamais integrariam um Estado judaico. Mesmo dentro da esquerda, era uma posição controversa — o próprio Shimon Peres, anos antes, discordava do colega. A pressão dos Estados Unidos, a moderação da OLP de Arafat e o avanço das negociações tornaram a visão de Rabin palatável para um amplo setor da sociedade israelense. E naquela noite de 1995 a multidão em defesa dos Acordos de Oslo surpreendera.

Nas entrelinhas do livro, Rabinovich cultiva a esperança de que um novo Rabin — um centrista capaz de pôr a maior parte do país no campo da paz — ressurja. A roda da História, porém, parece ter deixado os anos 90 em um passado remoto, em que a esquerda israelense exercia um papel central; um líder — Arafat — podia unificar o campo palestino; e os Estados Unidos, vitoriosos na Guerra Fria, tinham enorme poder e prestígio na região. Sem mudanças simultâneas nesses três níveis, a solução de dois Estados se esgotará. Nem um ou uma grande líder poderá alterar o curso da História. 

Este texo foi realizado com o apoio do Instituto Brasil-Israel.

Quem escreveu esse texto

Roberto Simon

É analista de risco político para a América Latina.

Matéria publicada na edição impressa #48 em junho de 2021.