Biografia,
O homem-instituição
Autobiografia de Rubens Ricupero narra a evolução de um animal político inimaginável no Brasil de hoje
23ago2024 • Atualizado em: 31ago2024 | Edição #85A história de como Rubens Ricupero virou ministro do governo Itamar Franco parece não fazer sentido nenhum. Diplomata de carreira, Ricupero era embaixador em Washington naqueles primeiros anos da década de 90. O Brasil vivia um desastre. Fernando Collor de Mello fora eleito presidente pelo voto direto (o primeiro desde 1960), sob uma Constituição recém-impressa, para governar uma Nova República e caçar marajás, mas virara presa do Congresso e das ruas. A faixa presidencial agora envolvia um presidente não eleito, que havia perdido a disputa pelo governo de Minas Gerais alguns anos antes. Itamar tinha pouco carisma, apenas dois anos e três meses de mandato pela frente e uma base parlamentar improvisada. Sua força política era uma incógnita.
Ainda pior que o quadro político era o maremoto na economia. Inflação acima de 1000% ao ano, desemprego em alta, o trauma do confisco da poupança, um rombo fiscal, temores sobre a trajetória da dívida externa. E o barco parecia à deriva: em seus cinco primeiros meses, o governo teve três ministros da Fazenda. Ricupero viu o terceiro deles, Eliseu Resende, ser avacalhado, em visita aos Estados Unidos, pelo então presidente do Banco Mundial, Lewis Preston. Ao dizer que estava “havia apenas dois meses” no cargo de ministro, Resende escutou de Preston: “É um recorde no Brasil, não?”.
O próprio Ricupero se esquivara de um convite para ser ministro da Fazenda, logo após o impeachment de Collor. O pedido de Itamar parecia não fazer o menor sentido. Ele não era economista, não tinha uma rede de contatos entre banqueiros, não vinha do setor privado, não conhecia a burocracia da Fazenda, não era da quota de partido nenhum. Não “dominava o assunto”, como respondeu ao presidente para deixar a história morrer sozinha.
Ela não morreria tão facilmente. Itamar inventou um cargo com título pomposo — Ministro de Estado Extraordinário para a Articulação de Ações na Amazônia Legal — para trazê-lo a Brasília. Depois, Ricupero virou ministro do Meio Ambiente. Por fim, em 1994, foi parar na Fazenda, quando Fernando Henrique Cardoso deixou o cargo para se lançar candidato à Presidência, com o Plano Real já em marcha avançada.
Interesse do Estado
Afinal, por que Itamar queria Ricupero no governo, de um jeito ou de outro? A resposta é um de vários pontos intrigantes — e atuais — nas mais de setecentas páginas da autobiografia que o diplomata aposentado acaba de lançar, Memórias. É um livro de imensa importância histórica ao detalhar, na primeira pessoa do singular, o caminho desde uma infância humilde no bairro paulistano do Brás até o topo da carreira diplomática, a montanha-russa do Plano Real, a chefia de uma agência da onu, e as visões sobre os rumos do Brasil, no passado e no futuro.
Naquele início da Nova República sob Itamar, Ricupero era uma figura pública exótica, cuja força política advinha de sua capacidade de parecer encarnar as instituições e o interesse de Estado. Ele não deixara as fileiras do regime militar para se juntar à transição rumo ao governo civil. Tampouco vinha da oposição à ditadura, do mdb ou do palanque das Diretas Já. Ricupero era produto da burocracia de elite brasileira e, no Itamaraty, trilhara uma carreira extraordinária — de assessor do chanceler San Tiago Dantas, uma das figuras mais transformadoras da política externa brasileira, nos anos 60, até a embaixada em Washington, três décadas depois.
Ricupero era uma figura cuja força advinha de sua capacidade de parecer encarnar as instituições
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No início dos anos 90, em meio a tanta incerteza política e econômica, aquele sujeito calvo e esguio parecia transcender a luta entre facções partidárias para falar, com seu sotaque do Brás, esticando os erres, em nome do interesse mais profundo do Estado brasileiro. Era isso que buscava o sucessor de Collor: uma figura que conferisse legitimidade institucional a temas sensíveis dentro de um governo acidental e em constante perigo. A lógica se aplicou ao incipiente tema da proteção ao meio ambiente e, sobretudo, à implementação do Real. Com fhc candidato, coube a Ricupero vender a ideia da nova moeda à população e fazer voar o plano concebido por seu antecessor.
Havia, decerto, algo de ilusório nessa imagem. Ricupero não era de organização partidária, mas, ao longo de décadas, tivera faro político e padrinhos poderosos. Por meio de San Tiago Dantas, aproximou-se de Tancredo Neves, a quem assessorou no ocaso da ditadura. De Tancredo, chegou a José Sarney, que o manteve como assessor especial da Casa Civil. Mas sempre sob a persona do burocrata erudito em história, que se propunha a intérprete da razão de Estado.
Declínio dos desalinhados
Assim, o livro diz algo profundo sobre o Brasil de hoje. Os atributos que levaram Ricupero ao topo do governo Itamar e do Plano Real jamais contariam pontos na vida política de Brasília em 2024, pelo contrário. É difícil imaginar um alto burocrata, sem vínculo estreito com partido ou ideologia, que se proponha a encarnar a vontade das instituições, virar ministro da Fazenda. Mesmo nomeações que, historicamente, revestiam-se de argumentos institucionais — como para ministro do Supremo Tribunal Federal ou para o comando da política externa — hoje se movem pela lógica partidária. As figuras institucionais entraram em extinção.
Otimistas talvez digam que isso é sinal de vitalidade das instituições brasileiras. Afinal, era a fraqueza institucional dos anos Itamar que acabava por valorizar um tipo como Ricupero. Mas o argumento pessimista é mais convincente: a polarização político-partidária e o facciosismo tomaram os principais espaços do governo e do Estado, empurrando para um papel secundário figuras sem alinhamento — partidário, ideológico ou ambos — ao grupo no poder. É uma mudança em detrimento da continuidade de políticas públicas e de uma visão de longo prazo, para além do imediatismo da política (com p minúsculo).
Ricupero quase que acidentalmente foi parar nos ministérios do Meio Ambiente e da Fazenda. A maior parte de sua carreira foi dedicada à diplomacia, incluindo três décadas de Itamaraty e nove anos como secretário-geral da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento , até se aposentar, em 2004. Seu habitat natural, portanto, sempre foi a política internacional. Nela estava a origem de sua visão “institucionalista”, alicerçada nas posições históricas e na tradição diplomática do Brasil. Nas últimas duas décadas, com o peso da orientação partidária e ideológica a crescer também na condução da política externa brasileira, Ricupero, agora fora do governo, tornou-se uma voz cada vez mais crítica.
Primeiro, nos três governos iniciais do pt, ele atacava a primazia de vínculos partidários nas relações com países como Venezuela, Equador, Bolívia, Nicarágua, além de manobras diplomáticas como a negociação nuclear com o Irã. Sobretudo, Ricupero considerava (e considera) que o pt confere à diplomacia um antiamericanismo ingênuo ao “torcer por qualquer país que desafie os eua” — seja um caudilho latino-americano, a China ou a Rússia. Em um segundo momento, com a ascensão de Jair Bolsonaro, o que era uma oposição dentro de um debate democrático se tornou uma revolta diante da destruição das bases da política externa pós-ditadura — o alinhamento ao governo Trump e à extrema direita global, a ofensiva contra a agenda do meio ambiente, a cruzada quixotesca contra o “globalismo”, e mais. Ricupero fez campanha por Lula em 2022 e, hoje, fala aliviado de seus pontos de discórdia com o atual governo, como na fábula do bode na sala.
É um livro único dentro do subgênero de memórias de diplomata, geralmente carregadas de pedantismo
Aos 87 anos, sua autobiografia é um relato saboroso de uma vida improvável, com reflexões que correm rápido nas páginas, numa prosa quase em modo stream of consciousness. É também um livro único dentro do subgênero de memórias de diplomatas. Geralmente, ex-chanceleres e embaixadores escrevem livros ou dão depoimentos carregados de pedantismo e exagero de sua própria importância, enquanto ignoram fracassos ou trechos menos lisonjeiros. O livro de Ricupero tem uma sinceridade atípica. Ele fala, aberta e detalhadamente, sobre sua queda do Ministério da Fazenda, após um sinal aberto de satélite captá-lo a admitir, diante da câmera, que escondia dados negativos da economia. Aborda também temas pessoais delicados, como sua luta contra a depressão ao longo da vida.
Sob uma perspectiva histórica, o trecho mais importante é o que cobre os anos Itamar, quando — há exatos trinta anos — a primeira nota do Real levou a assinatura do então ministro Ricupero. Um passado que agora nos parece longínquo, mas que expõe tantos desafios atuais da Nova República.
Matéria publicada na edição impressa #85 em setembro de 2024.
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