Literatura japonesa,

Mundo em desencanto

Escritos entre as décadas de 70 e 80, contos de Izumi Suzuki soam como profecia, com estados totalitários, fluidez de gênero e jovens assexuados

01nov2024 • Atualizado em: 31out2024 | Edição #87 nov
Família assiste a cena de execução na Guerra do Vietnã pela televisão, em janeiro de 1968 (Warren K. Leffler/u. s. News & World Report Magazine Photograph Collection/Reprodução)

Embora a maioria dos sete contos de Tédio terminal tenham sido escritos entre a segunda metade da década de 70 e início dos anos 80, sua temática não poderia ser mais atual nesse momento de caos climático. As cidades que abrigam os personagens são pós-apocalípticas, refeitas por estados totalitários que controlam rigidamente os seus cidadãos, determinando a distribuição dos gêneros, interditando filmes, livros e menções a temas do passado, produzindo chips a serem inseridos nos cérebros das pessoas e escolhendo aquelas a serem exterminadas. Ao lado disso, avanços tecnológicos, como transporte interplanetário, replicadores de objetos, câmeras de espionagem com tradução simultânea e uma profusão de drogas de todos os tipos.

Se a temática não surpreende em nada os leitores costumazes de ficção científica especulativa, a estranheza do comportamento dos personagens diante da situação em que se encontram chama a atenção e responde pelo caráter único e original dessa obra. O medo e a ansiedade que costumam guiar as ações de pessoas vivendo em situações de caos e opressão acabam por se transformar em um enorme tédio, um tédio terminal.

A impressão que se tem é que, se possível, os personagens gostariam de passar o dia deitados e drogados, seja por meio de pílulas, injeções ou chips que provocam sensação de bem estar. Ao tédio se associa o culto à superficialidade: “Idolatro o vazio. Eu me dedico totalmente ao superficial”, diz uma personagem de “You may dream” em conversa com a amiga que lhe pede que, depois do seu congelamento decretado pelo estado, abrigue a sua consciência em seus sonhos. Já o marido extraterrestre da protagonista de “Esqueci” pratica o “alheamento psicológico” que “proporciona uma experiência mais profunda do que o prazer”.

No último conto, que dá título à coletânea, uma personagem comenta: 

Faço de tudo para ser atingida o mínimo possível pelos acontecimentos. Isso virou hábito e acabei me tornando uma pessoa impassível. Mas em se tratando do mundo da ficção, consigo chorar de forma despreocupada. 

Ao saírem de casa, as pessoas estranham ver as paisagens sem moldura. “Me sinto tranquila quando vejo pessoas emolduradas seja por uma janela de verdade ou uma falsa. Será que é resultado de assistir à TV em excesso?”

O tema dos contos guarda relação com a vida de Suzuki, que trabalhou como modelo e atriz

O desencanto com o mundo surpreende quando sabemos que a maioria dos contos foi escrita justamente no período em que o Japão vivia um boom econômico, quando a prosperidade e a esperança pareciam ter substituído o desalento do pós-guerra. Considerando que Izumi Suzuki, nascida na cidade de Ito em 1949, produziu toda a sua obra ainda jovem, somos levados a pensar que o otimismo dos mais velhos, aqueles que efetivamente viveram as duas guerras mundiais (e as outras nas quais o Japão se envolveu) não atingiu os jovens. 

O tema dos contos guarda estreita relação com a vida de Suzuki que, antes de se estabelecer como escritora, trabalhou em fábrica e também como modelo e atriz. Casou-se com um saxofonista dependente químico, que acabou morrendo de overdose de uma substância entorpecente, do mesmo tipo usado por seus personagens no livro. Era considerada um ídolo pop da ficção científica japonesa, e depois do que parece ter sido um longo período de dificuldades, cometeu suicídio aos 36 anos, enforcando-se em casa.

Mulheres protagonistas

Diante da prevalência de protagonistas mulheres, poderíamos situar Suzuki no rastro das autoras japonesas feministas que começaram a surgir no Japão com o fim do xogunato e a Restauração Meiji (1868) — quando o país se abriu para o exterior após mais de dois séculos de isolamento —, como a poeta Akiko Yosano (1878–1942) e a romancista Raicho Hiratsuka (1886–1971). Essa última, com outras quatro mulheres, foi a fundadora, em 1911, do primeiro jornal feminista, Seito, e de uma sociedade que visava promover, via literatura, os direitos das mulheres. Considerando-se que, mesmo com esses movimentos, o feminismo em uma sociedade marcadamente patriarcal como a japonesa teve e ainda tem grande dificuldade em se instaurar, Suzuki continua a ser considerada uma autora à frente de seu tempo.

“Um mundo de mulheres com mulheres”, conto que abre o livro, é o mais feminista deles. Começa com um mito de origem peculiar:

No princípio só havia mulheres na Terra. Viviam em paz, mas um dia uma mulher deu à luz uma criança diferente, era meio bruta em tudo o que fazia, estabanada; morreu depois de causar, por anos a fio, todo tipo de transtorno à sua volta, mas não sem antes deixar descendentes. Assim começou a linhagem dos homens.

Foram eles a descobrir a guerra e as armas e a “nutrir uma estranha obsessão” por conceitos como “revolução, trabalho, arte”. Agiam como crianças mesmo já adultos e acabaram por esgotar os recursos do planeta.

Provavelmente devido a mutações decorrentes da poluição causada por eles, seu número começou a diminuir e os remanescentes viram-se confinados, tratados como bichos e preservados com a única finalidade de permitir a procriação dos casais femininos via fecundação artificial. Os livros do passado em que eles apareciam são censurados e as meninas só vem a conhecê-los em passeios organizados pela escola para a visita à Zona Habitacional de Isolamento, em que, como em um zoológico, os homens mostram aparência animalesca e, se não contidos, são agressivos e ferozes. Yuko, uma das irmãs protagonistas, vive uma experiência inusitada, defrontando–se com um segredo sobre os homens desconhecido por suas amigas.

Se nesse conto a dicotomia de gênero resolve-se pelo apagamento de um deles — embora ressurja no interior dos casais homossexuais, com mulheres adequando-se a um ou outro papel —, na maioria dos demais ela é irrelevante. As pessoas são andróginas, como a protagonista de “You may dream” que, revoltada ao se ver assumindo gradativamente o papel masculino diante da amiga que agora habita o seu sonho, exclama: “Eu sou um andrógino? Hermafrodita? Não sou nem homem, nem mulher, não preciso de gênero”. Em “A fumaça entra nos olhos”, o diálogo inicial entre um homem e uma mulher transforma-se naquele entre duas mulheres desde que a protagonista vê o homem no sonho como uma mulher chamada Jane. Em “Piquenique noturno”, a filha mais nova do casal era menino “até que a mãe declarou que crianças que tinham corpo de menina precisavam ser criadas como meninas, e o irmão mais novo virou uma irmã”.

O feminismo de Suzuki revela-se, portanto, peculiar, pois os gêneros são marcadamente fluidos e performativos, levando os críticos a aproximá-la de outras autoras feministas de ficção científica, como sua contemporânea norte-americana Ursula K. Le Guin, autora do belo A mão esquerda da escuridão (Aleph, 2014).

Aversão ao sexo

O desinteresse por sexo dos personagens também chama a atenção, funcionando quase como uma profecia se pensarmos no que vem acontecendo com a juventude do Japão (e do mundo) hoje, quando cada vez mais jovens se assumem assexuados. Em “Um mundo de mulheres com mulheres”, a prática de sexo é punida com detenção e isolamento e, em “Tédio terminal”, se comenta sobre a mãe que teve filhos por meios naturais: “parece bicho”. No mesmo conto, a surpresa de um dos personagens ao ver um contraceptivo gera o seguinte comentário: “Quem será que usa? Devem ser velhos tarados, que fazem muito aquilo ou que têm muito sêmen. Devem ter alguma peculiaridade metabólica para fazer essas coisas hoje em dia”.

Além da fluidez de gênero e a aversão ao sexo, o tempo, seu significado e o ritmo de sua passagem, é uma preocupação constante da autora. Em “Piquenique noturno”, talvez o conto mais sofisticado e original, uma família habitante de outro planeta, procurando agir como terráqueos típicos, programa um piquenique, mas acaba por se perder com os horários e fazê-lo à noite. O filho, principal pesquisador dos modos terráqueos em livros e filmes antigos, observa: “Ainda não sei exatamente, mas estou achando que o tempo é um negócio bem importante”. E continua, falando à irmã, que se vê em dúvida sobre a sua idade: “Escuta, você acha que o tempo é um negócio inventado? Tenho pensado que, onde não tem pessoas, o tempo não existe”.

A protagonista de “A fumaça entra nos olhos” sofre os efeitos do consumo excessivo de uma droga calmante na forma de envelhecimento acelerado. A partir daí, a imprevisibilidade da passagem do tempo a assombra: “O tempo poderia voltar a correr numa velocidade insana a qualquer momento. Era por isso que eu não parava de checar o relógio na parede”.

A instabilidade relacionada a deslocamentos radicais no tempo dá-se também por meio das viagens interplanetárias, como em “Esqueci”, que se desenrola em uma Terra em que as diferenças entre países se tornaram irrelevantes, seus habitantes convivem com extraterrestres, se comunicam por telepatia e a ameaça de guerra interplanetária paira no ar. Em “Lembranças do Seaside Club”, a circulação em jogo é sobretudo entre realidades simultâneas, com personagens tomando, aqui e ali, formas e personalidades diferentes, sendo uma poltrona de voz rouca a única personagem estável.

O tempo, seu significado e o ritmo de sua passagem, é uma preocupação constante da autora

Como em um crescendo, é no último conto, “Tédio terminal”, que o caráter distópico do mundo é mais visível. Há muitos desempregados, naves-patrulha policiais prendem pessoas que passam mais do que vinte minutos paradas em algum lugar, vota-se em políticos por meio de artistas famosos. E ali impera o tédio. A nova civilização é composta de jovens sem olfato ou paladar, que morrem por se esquecerem de comer. “Já desmaiei várias vezes. Parece que temos que comer pelo menos duas vezes por dia. Por que será? Porque é muito entediante ficar sem fazer nada.”

Quando pensamos nos temas tratados pelas autoras japonesas contemporâneas, fica ainda mais claro o vanguardismo de Suzuki. O distópico romance de Yoko Tawada, As últimas crianças de Tóquio (Todavia, 2023), também retrata a fragilidade das novas gerações em comparação com a força e resiliência dos velhos; Terráqueos, de Sayaka Murata (Estação Liberdade, 2024), tematiza a desilusão dos jovens com o mundo e o desejo de partirem para outro planeta; A polícia da memória, de Yoko Ogawa (Estação Liberdade, 2023), fala de um mundo em que os jovens não se dão conta das coisas de que foram privados e, como em “Um mundo de mulheres com mulheres”, a censura sobre o passado impera. Temas similares são tratados em outras ficções distópicas de autoria feminina ainda não traduzidas no Brasil, como Life Ceremony, de Sayaka Murata, Dragon Palace e Under the Eye of the Big Bird,de Hiromi Kawakami.

Em todas elas, impera a dificuldade dos personagens em se encaixar no mundo e a desilusão com a vida, que acaba por virar descaso, levando ao isolamento e tédio. São capazes de retratar, de modo original, a vida de todos nós, sobretudo mulheres e jovens, nesse mundo distópico que adentramos e para o qual não vemos saída.

Editoria com apoio Japan House São Paulo

Desde 2019, a Japan House São Paulo realiza em parceria com a Quatro Cinco Um uma cobertura especial de literatura japonesa, um clube de leitura e eventos especiais.

Quem escreveu esse texto

Aparecida Vilaça

Professora de antropologia social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é autora Ficções amazônicas (Todavia, 2022).

Matéria publicada na edição impressa #87 nov em novembro de 2024. Com o título “Mundo em desencanto”