Literatura infantojuvenil,
Ode aos tempos suspensos
O rapper e escritor Gaël Faye evoca seus dias de garoto no Burundi, na África Oriental, em livro ilustrado pelo quadrinista Hippolyte
18maio2023 | Edição #70Em Futuro ancestral, o líder indígena Ailton Krenak, que tem o coração no ritmo da terra, escreve sobre a curiosa tarefa “branca” de mirar o futuro sem conseguir perceber o presente ao redor — ainda que o futuro nem exista, seja somente uma ilusão. Vemos crianças sendo preparadas e moldadas para o sucesso, mesmo que não possamos definir essa palavra para elas. Vemos uma formatação de pessoas para a utilidade, agendas lotadas, atividades constantes e pouco sentir.
O tédio das tardes sem fim, lançado pela Oh!, selo infantojuvenil da Veneta, fica naquele passado que possibilitava o tempo inaugural da infância, do encantamento e da fabulação. Sobre isso nos conta o livro de Gaël Faye, filho de mãe ruandesa e pai francês, nascido e criado por alguns anos em Bujumbura, no Burundi:
Quando menino, tive oportunidade de me entediar. Não tinha escola depois do meio-dia e na minha casa não havia telas, nem de televisão. Assim, tive que aprender a usar os tesouros da imaginação para inventar brincadeiras e passatempos. Guardo desses dias imóveis a lembrança de um período encantado, em que pude encher até a borda a caixa-forte do meu imaginário. O tédio das minhas tardes de infância era uma viagem em que o tempo me pertencia, um espaço onde eu fabriquei imensos sonhos, um mundo sem começo e sem fim, como uma frase que termina em três pontinhos de reticência…
Logo nas primeiras páginas, é possível sentir o som mágico do tédio, uma mistura de rio, mosquitos e cortinas dançando com o vento. O menino pula da cama, mas parece manter os olhos fechados enquanto escuta as aves e percebe o sol entrar.
Deitado novamente, agora mesclado à paisagem bucólica da vila de montanhas e casas esparsas longe de tudo, o garoto é sonho, um corpo-natureza que ocupa todo o livro. E enquanto o leitor passeia por referências da cultura local, feita de máscaras, esculturas e outros objetos ilustrados, em rimas o autor vai fazendo poesia com as memórias e brincando com de tudo um pouco: bola, expedição, parada de formigas, teatro e ilusão. Às vezes dentro de casa, onde o aquário é o programa predileto, mas quase sempre a céu aberto, onde o verde é escola, árvore-templo de manga no pé.
Relaxamento ancestral
Os mesmos pássaros que abrem a história fecham o livro, guardando nas 32 páginas coloridas lembranças africanas que poderiam ser nossas, muito próximas. É que além da conexão entre América do Sul e África a infância carrega algo de universal. E, se vivida na natureza, é experiência ancestral. Pelo menos é o que diz o pesquisador Richard Louv, no livro A última criança na natureza (Aquariana, 2016). Para ele, a criança sente um relaxamento ancestral quando sobe no alto de uma árvore. Essa sensação é a mesma de quando éramos presas de grandes animais e tínhamos a árvore como ponto de fuga e proteção. Por isso, hoje os estudiosos afirmam que a maior nutrição para o nosso desenvolvimento integral vem do contato com a natureza — que é o que somos e ao que pertencemos.
As crianças não precisam de mais produção, e sim de ócio, poesia, beleza e simplicidade
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Gaël Faye parece saber disso, porque assim o sente. Ele tinha treze anos quando precisou fugir da guerra civil no seu país natal, deixando para trás — e posteriormente recuperando em canções e poemas — suas experiências de “menino do mato” em uma velha casa de tijolos vermelhos. O pai do escritor, herpetólogo, colecionava serpentes e outras cobras. Muitos pássaros também preenchiam os dias de melodias e, para Gaël, a vida se passava em dois tempos: a estação da seca e a outra, da chuva, bem diferente de como ela acontecia em Paris, para onde se mudou.
O tédio das tardes sem fim é um poema ilustrado autobiográfico que nasceu como música e foi adaptado para livro, com desenhos de grafite e lápis de cor, além de muita ternura pelo passado (ou esse futuro que sonhamos inventar). Se em qualquer cultura as crianças são portadoras de boas novas, que possamos ler e ouvir as subjetividades de Gaël e Hippolyte para inventar o tempo que queremos. As crianças não precisam de mais produção e competição, e sim de ócio, poesia, beleza e simplicidade: tédio de tardes sem fim. E os livros, podemos garantir, são bons em criar esse vínculo e pensar, sem nostalgia, cartografias de mundos possíveis e mais potentes e amorosos do que este atual.
Matéria publicada na edição impressa #70 em maio de 2023.
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