Literatura infantojuvenil,
O sertão vai virar mar?
Com o dom de fazer chover, gêmea benzedeira se distrai em reza, quebra tradição e atrai tormenta em conto de encantamento
01fev2022 | Edição #54Ali em Tururu do Sul, vilarejo de mulheres onde os relógios param toda vez que alguém vai embora e os galos cantam desregulados, as gêmeas benzedeiras Feliciana e Damiana têm o dom dos dons: fazem chover no sertão. Mas para que isso aconteça sem que algo de espantar ocorra, as Irmãs da Chuva têm de cantarolar e chamar os santos juntinhas, como manda a tradição. É a união dessas mulheres fortes que combina a receita certa, reza e canção, para alcançar qualquer encantaria. Se uma puxa o verso, a outra o regula. Quando uma perde o tom, a outra ajusta a rima.
Acontece que não foi isso que sucedeu naquele dia em que, debruçada na janela, Feliciana clamou por chuva ao ver passar outras mulheres sob o sol seco e escaldante. Avoada, chamou diferentes nomes e acabou pelejando para Santa Teresa, a que troveja e forma nuvens bojudas que se agarram ao vento para poder voar e depois desabam sem tréguas. Quando rezou sem a irmã, Feliciana nada imaginou a tormenta que viria. E quando a chuva impetuosa varou o sertão por três dias e noites, o jeito foi reunir sabenças e encantarias em prosas, cantos e versos. Foi assim, então, que tudo começou e profetizou a virada do tempo em Tururu do Sul. É que, uma a uma, as janelas das casas foram se fechando. O rio acordou mandão. A viola cantou diferente. O calo doeu. E até a bordadeira espetou o dedo na agulha. Era tempestade na certa!
Como vento de caráter forte que faz palavra chegar mais rápido ao terreiro, Feliciana correu de um lado enquanto Damiana atravessou o outro. As duas tinham em mãos um mapa bordado com direções que as levariam ao alto do cruzeiro. O rumo daria na salvação do vilarejo, mas até lá um tanto de coisa aconteceu, outro tanto de gente apareceu. E tudo isso foi testemunhado pela escritora Gabriela Romeu, quando do alto da torre o vento lhe sussurrou essa história, ampliada em mistério e beleza pelas mãos da ilustradora Anabella López, que virou livro na edição cuidadosa da Peirópolis.
Encantarias brasileiras
São esses milagres da vida simples que ecoam a voz do sertão nessa cidade inventada para Irmãs da Chuva. O texto, fluido e sonoro, está banhado de oráculos visuais que convocam à leitura atenta para dentro de cada ilustração, uma representação vibrante do sertão e que, nos cabelos de chuva das personagens, na natureza e nos elementos dessa cidade, derramam cores, histórias e simbolismos. Se o texto abre janelas de imagens, as ilustrações atendem ao chamado e apresentam esse universo sobrenatural de maneira muito forte e particular, banhada de fascínio pela cultura latino-americana, dentro de uma imensa pesquisa composta de referências botânicas, religiosas, cabalísticas, mágicas e artísticas, em que o interesse pelo poder das mãos e do fazer é presente.
Em sussurros, encantamentos e assombros, Irmãs da Chuva se desenrola viva como uma história de um país que ainda é chave de abrir percepções e sentidos, apesar de “nefastos poderes”, como escreve Regina Machado no prefácio. Na corrida contra o tempo da tormenta, é uma obra que valoriza o encontro, a relação com o natural, a sabedoria do território, a fé, a arte e o poder das culturas e das palavras. Fora isso, nos conta sobre a força das mulheres que permanecem, resistindo e cuidando do chão, mesmo quando os homens abandonam as famílias da noite para o dia. É um daqueles livros que depois de lidos serão contados em muitos terreiros.
Este texto foi realizado com o apoio do Itaú Social.
Matéria publicada na edição impressa #54 em outubro de 2021.
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