Literatura infantojuvenil,
Álbum de uma trupe familiar
Retratos do grupo teatral Carroça de Mamulengos revelam uma vida em permanente estado de mudança
01mar2020 | Edição #31 mar.2020Em um só livro não caberia a história da trupe familiar Carroça de Mamulengos. Gêneros literários tradicionais não dariam conta de narrar suas aventuranças, memórias e efabulações; e uma única linguagem visual não bastaria para traduzir o alcance das paisagens avistadas e gestadas nos quarenta anos de estrada dos dez integrantes da família Gomide. Segundo a editora Renata Farhat Borges, “o livro foi pensado de forma expandida”. As aproximações do real, com as quais Gabriela Romeu e a trupe de artistas tão bem trabalham, criando força e poesia, a desafiaram a pensar não apenas um, mas dois livros. “O primeiro, literário e autoral, seria ilustrado por um artista que pudesse se debruçar sobre as imagens da trupe e as fotos do baú dos Gomide e subjetivar, transformar, recortar e colar memórias para acompanhar a poesia do texto. O segundo traria um texto mais jornalístico, com perfis e fotos dos membros da trupe”, diz Renata. Surgem, então, dois formatos editoriais que brincam com a curiosidade do leitor, além de áudios acessíveis por QR Code com canções e depoimentos.
Enquanto um dos livros é editado de forma a lembrar um caderno com anotações poéticas de uma observadora astuta, o outro vem em formato de porta-retratos, reproduzindo, intencionalmente, segundo a editora, a técnica do kamishibai criada pelos japoneses no pós-guerra para narrar histórias: em um suporte, uma imagem fica voltada para o público, enquanto o contador lê o texto na parte de trás. “Assim, oferecemos apenas duas versões dessa história fantástica, embora ao final, no pequeno elucidário das referências culturais da Carroça, tenhamos deixado pistas preciosas para os que desejem entender melhor os valores que norteiam essa trajetória artística e humana exemplar.”
Em Álbum de família, a escritora, crítica teatral e documentarista Gabriela Romeu tece uma narrativa poética tendo como ponto de vista a plateia, lugar privilegiado dos que se encantam genuinamente com a arte mambembe. A autora apresenta, numa espécie de inventário, a chegada de cada um dos oito filhos do casal Carlos Babau e Schirley França, criados em praças Brasil afora, alfabetizados pela mãe, embalados pelas histórias do pai e regidos por mestres da cultura popular brasileira e da literatura universal. O leitor fica sabendo, por exemplo, que, para cada filho que nascia, um novo espetáculo teatral se criava.
Biofantasia
Como que dando à luz novas histórias, enredado pelo imaginário contagiante que perpassa a biografia da família, o gênero textual é definido pela editora Renata como “biofantasia”, inspirada em Jorge Miguel Marinho [Te dou a lua amanhã — biofantasia de Mário de Andrade, 1993]. A autora diz apreciar o termo: “Não gosto de usar ‘não ficção’ para definir o que venho buscando fazer, que é transitar pelas estradas da realidade e transformar encontros em histórias. Por que é preciso negar para definir, afirmar? É mais um recontar do que um não ficcionalizar, ainda que o ponto de partida sejam os elementos/fragmentos da realidade. É um ‘transver’, diria Manoel de Barros”. Da narrativa poética de Gabriela Romeu muitas vezes ecoam vozes de grandes nomes da literatura nacional, como o próprio Manoel de Barros ou ainda João Guimarães Rosa, autores-referência que, assim como ela, se inspiraram nas andanças sertão afora, revelando ao leitor um Brasil profundo, em constante redescoberta.
A figura dos mestres tradicionais se faz presente tanto na história de vida da Carroça de Mamulengos quanto em seus espetáculos, e salta aos olhos também nas escolhas autorais e editoriais que compõem as duas publicações. Carlos Babau, mentor da trupe, é admirador de personalidades importantes para compreender a história do país, ainda pouco estudadas em nossas escolas. De Padim Ciço a Castro Alves, passando por Antônio Conselheiro e Lampião, o autodidata Carlos Babau os reverencia sem hesitar e faz jus às suas referências ideológicas. Natural de Goiás, passou a infância em Uberlândia (mg), na casa dos avós maternos militantes, onde conviveu com ensinamentos das ligas camponesas e viu presos políticos serem escondidos no período da ditadura. Já com os avós paternos, aprendeu práticas da agricultura de subsistência que preserva até hoje. Tendo o palco como chão e o céu como teto, o casal Gomide gera uma prole de multiartistas e reinventa a resistência pela arte. Os filhos, hoje crescidos, seguem recriando a cultura popular brasileira, seja brincando, divulgando a Folia de Reis na região do Cariri (ce) e atuando politicamente para que ela sobreviva, ou trabalhando com agroflorestamento nas entranhas de um país mais do que nunca castigado pela exploração indevida dos recursos naturais e pelo desprezo às manifestações populares dos povos originários.
A sensibilidade dos artistas que recontam a história da trupe familiar Carroça de Mamulengos não poderia ter resultado mais convidativo para quem chega a esse universo pela primeira vez. No texto, isso se revela sobretudo pelo atravessamento das vozes narrativas, trazendo um sussurro sábio do avô aqui, um jogo de rimas do pai com os filhos ali, uma pergunta filosófica dos irmãos gêmeos acolá, numa trama de muitos fios e existências. Já as colagens criadas pela artista Catarina Bessel partem, como ela mesma conta, “da curiosidade de investigar as personalidades com as ferramentas de uma ilustradora para materializar o fantástico numa mistura de colagem das fotos com cores e formas da imaginação despertada por elas”. A junção de tanta arte em estado latente gera não apenas dois livros em formatos distintos, mas múltiplas e inventivas linguagens para narrar uma história que se quer contada e recontada por muitas vozes.
Estes textos foram realizados com o apoio do Itaú Social
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Matéria publicada na edição impressa #31 mar.2020 em fevereiro de 2020.
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