Literatura infantojuvenil,
De olhos bem abertos
Com jogos de imagens e perguntas, Alexandre Rampazo provoca olhares viciados a enxergar a invisibilidade
26jul2023 | Edição #72Na primeira página de O que você vê temos o desenho de várias pessoas sobrepostas e um traço horizontal em linha reta perpassando os corpos, na parte superior. Se olharmos rapidamente, sobressai um grande rabisco, no qual identificamos apenas alguns rostos, cabelos, pernas, pés em movimento. E um pássaro no alto. Este conseguimos ver com nitidez. A imagem pode ser perturbadora: há apenas o contorno dos corpos, que não estão preenchidos com cores e se misturam uns aos outros, como se fossem transparentes.
A página seguinte traz a mesma imagem, sempre em fundo branco com traçado em preto, junto com uma pergunta que interpela o leitor: “Me diz uma coisa: o que você vê?”. O questionamento, que não sabemos ainda de onde vem, convoca a rever a imagem tentando identificar figuras no emaranhado de fios. O leitor pode identificar rapidamente, no canto esquerdo da página, uma garota com cabelo preso, semblante tenso, suor no rosto, pernas em movimento. Os olhos talvez se concentrem na figura que vem logo abaixo, um rosto um pouco maior, de uma pessoa idosa, segurando firmemente sua bolsa nas mãos. Ou, quem sabe, foquem na parte central da página, onde se destacam óculos escuros e um bigode, de dono não identificado.
A partir da terceira página tudo muda. Os rabiscos somem e, em uma página em branco com apenas uma das pessoas misturadas destacada, o narrador se põe a responder com palavras à pergunta inicial — “o que você vê?”. A resposta ao que se vê é sempre hipotética: “Que talvez ele tenha passado um belo fim de semana com a família? Que eles almoçaram juntos e riram bastante à tarde…”.
Como as personagens, nós também podemos escolher ver ou não ver o que está diante de nossos olhos
A página dupla seguinte traz do lado esquerdo a pessoa identificada e do lado direito a multidão inicial sem ela. Aos poucos vamos notando que, à medida que figuras se descolam da cena, a imagem vai se tornando menos confusa, já que há menos corpos transpassados. No entanto, com o passar das páginas, enquanto do lado direito o rabisco inicial vai ganhando nitidez, do esquerdo as personagens identificadas se acumulam e voltam a se cruzar, como que reconstituindo aquela cena inicial na qual estavam indistinguíveis.
Assim segue a narrativa e pessoas diversas vão se destacando singularmente da multidão: crianças, jovens, adultos, velhos; com cabelo liso, encaracolado, comprido, curto; usando óculos, gorro, boné, mochila nas costas; lendo um livro, andando de skate, passeando com o cachorro ou com um bichinho de pelúcia. Enquanto isso, o narrador segue descrevendo o que vê sem muita certeza, mas com certo encantamento lúdico, provocando no leitor outras dúvidas: “Será que ele gosta de ser carteiro? Entregar histórias de saudades e histórias de felicidades deve ser legal, né?”.
O que você vê, de Alexandre Rampazo
As descrições são, na verdade, micro-histórias de vida baseadas no que se vê, mas não só. As aparências norteiam, inicialmente, as respostas. Por exemplo: se a pessoa está vestindo um terno e levando uma maleta nas mãos, o narrador intui: “Hoje ele acordou cedo com a certeza de que terá um belo dia. É o melhor chefe do mundo, na melhor empresa do mundo, com as melhores pessoas do mundo e quer ajudar todo mundo!”. Aos poucos, o leitor vai percebendo certa ingenuidade nas respostas do narrador sobre o que vê. Afinal, um homem vestindo terno e levando uma maleta não é necessariamente o chefe mais benevolente do mundo. Vamos compondo, aos poucos, um perfil desse narrador: brincalhão, ingênuo, atento às aparências e às marcas sociais, sobretudo de classe.
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Vale destacar que algumas pessoas atravessam as páginas, ao lado dessas que são descritas pelo narrador sem que ele as mencione. Não as vê? Ou deixa um espaço aberto para que o leitor cuide de vê-las e descrevê-las? Ver, não ver, ver e notar, ver e desconsiderar são movimentos presentes na leitura deste livro. É nas páginas finais, quando o traço em linha reta que só havia aparecido na primeira página volta, que somos surpreendidos com a presença de uma dupla de crianças, por trás dos corpos que ainda atravessam a página.
Aos poucos, conforme as pessoas vão passando, vemos com maior nitidez as crianças, desenhadas em tamanho menor que os demais. Elas estão sentadas, parecem ter um cobertor sobre as pernas cruzadas e junto delas há um recipiente: uma caixa aberta e uma caneca. Já não há ninguém além delas e podemos intuir, pelo vazio que a ausência dos passantes gerou, que aquele traço reto que cruza a página pode estar delimitando a rua onde se encontram as crianças. Nesse mesmo instante, descobrimos que elas é que narravam a história, descrevendo o que viam à sua frente. É nesse momento também que uma delas propõe fecharem os olhos e dizerem o que veem.
Agora, temos apenas a dupla de crianças na página. Estão de olhos fechados e sua imagem vai se ampliando, ocupando a página inteira. As últimas páginas, em fundo preto, levam o leitor para o que as crianças veem com os olhos fechados. O diálogo entre elas continua. Se perguntam se fechar os olhos é o mesmo que sonhar e concluem que de olhos fechados se tornam invisíveis, quase irreais naquele espaço que ocupam, mas muito reais dentro do sonho, onde podem voar — como os pássaros, tão nítidos em todas as páginas do livro. A última pergunta que fazem é: “Tenho que abrir os olhos agora?”.
Mundo real
Abrir os olhos pode significar, para essa dupla de crianças, voltar a ser invisível no mundo real. A mesma invisibilidade à qual as lançamos com nossos olhos fechados de passantes apressados. Assim como elas, nós também podemos escolher ver ou não ver o que está diante de nossos olhos.
Nos últimos anos, tornou-se quase impossível não ver a quantidade de moradores de rua habitando as grandes metrópoles brasileiras. É sobre isso o posfácio do livro assinado por Guilherme Boulos, deputado federal pelo psol e coordenador nacional do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), que fala sobre duas principais formas de ver o mundo: com indiferença ou com solidariedade. Boulos nos lembra que, atualmente, há mais de 200 mil pessoas vivendo nas ruas em nosso país — como as duas crianças que narram essa história? E provoca: fechar os olhos e invisibilizar o sofrimento humano e a desigualdade social pode ser uma opção?
Matéria publicada na edição impressa #72 em julho de 2023.
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