Literatura em língua francesa,

Vinde a mim as criancinhas

Relançamento de clássico de Marcel Schwob mostra a atualidade de episódio em que crianças tentaram conquistar Jerusalém

01fev2021 | Edição #42

O livro A cruzada das crianças, relançado pela Editora 34, tem a rara qualidade daquelas histórias cujo significado o tempo não consegue diluir. O texto, que conta um caso célebre de 1212, foi publicado em 1896 pelo simbolista francês Marcel Schwob. Saiu no Brasil em 1987 pela Iluminuras e em 2011 pela Hedra. Volta agora às prateleiras em um mundo mais uma vez distinto. A história da cruzada não perdeu força. Parece, inclusive, ter ganhado embalo. Lido agora — entre debates sobre mito e realidade, religião e ciência —, o enredo toca em pontos sensíveis. 

A cruzada das crianças é um episódio medieval difícil de explicar. Sabe-se pouco sobre ela e nem sempre os historiadores conseguem desemaranhar o novelo, determinando o que aconteceu de fato no século 13. Em linhas gerais, diz-se que multidões de crianças deixaram o território da França e da Alemanha e caminharam até a Itália. Queriam embarcar ali e cruzar o Mediterrâneo rumo à Terra Santa para libertá-la do controle dos muçulmanos. Era quase um delírio, e entram aí as versões que a história propagou. Por exemplo, a ideia de que os peregrinos eram liderados por duas crianças: um tal Stephen, francês, e um tal Nicholas, alemão, que recebiam inspiração divina.

A ideia é irresistível: crianças pobres andando descalças pela Europa, movidas por um fervor religioso, pela vontade de fazer aquilo que seus líderes seculares e espirituais não tinham sido capazes de fazer. Alucinavam, ouviam vozes, pensavam que poderiam andar em cima do mar. Salvariam o cristianismo. A ideia é também perigosa: as crianças, segundo algumas versões, foram enganadas, sequestradas, vendidas por traficantes de escravos e levadas até o outro lado do mar. Em vez de libertar a Terra Santa, perderam sua própria liberdade. Ou morreram na água.

Há pouca clareza sobre o que de fato ocorreu. A partir de relatos medievais, historiadores debatem se a cruzada era mesmo de crianças. Alguns estudiosos dizem que termos como “pueri” poderiam se referir não à idade dos andarilhos mas à condição social de quem não tem poder. Talvez fossem jovens trabalhadores, e não crianças no sentido contemporâneo.

Em algumas versões, as crianças foram enganadas, sequestradas e vendidas por traficantes de escravos

O debate, é claro, passa batido pelo significado de uma história que já existe há oito séculos e continua a interessar leitores, quer seja ela real ou não. Quando Schwob — que influenciou gente como Jorge Luis Borges (que assina o prólogo da obra), Roberto Bolaño e William Faulkner — escreveu sua versão daquela cruzada no final do século 19, ele manteve a ideia de que os andarilhos eram crianças. E elas são as protagonistas ideais para essa história: são inocentes e vulneráveis, crentes e puras, carregam cruzes pelas estradas da Europa. Expõem, também, a incompetência dos adultos. No texto de Schwob, por exemplo, o papa Inocêncio 3º lamenta que “todos esses inocentes serão levados à perdição” — mas não é capaz de fazer nada para impedi-los. O pontífice tampouco é capaz de libertar Jerusalém. Apenas lamenta, julga.

A edição da 34 é uma revisão da obra que a Iluminuras já tinha publicado em 1987, em tradução do escritor brasileiro Milton Hatoum. O autor de Dois irmãos já havia traduzido contos de Gustave Flaubert, e nessa obra carrega para o português toda a riqueza do texto de Schwob. As ilustrações delicadas de Fidel Sclavo são inéditas.

A cruzada das crianças é uma obra curtíssima, a ser lida de uma sentada só. Requer uma leitura atenta, porém. O estilo de Schwob não desperdiça palavras. Um dos narradores, um goliardo — um clérigo andarilho —, tem medo de crianças. Outro narrador, um leproso, quer maltratá-las. Já o papa Inocêncio condena o fervor cego delas. São possivelmente, assim, visões diferentes da própria ideia de infância.

Já as cores, como Noemi Jaffe sugere na orelha do livro, têm seus próprios significados. Para Schwob, por exemplo, quase tudo é branco. Abelhas, dentes, homens, crianças, cruzes, ondas. A cor da pureza, escreve Jaffe, mas também da intolerância que leva ao desastre. Uma das crianças que narra a história, de nome Allys, diz que o branco “significa o fim de tudo” e também que “nosso senhor é branco”. Mesmo a ideia de marchar a Jerusalém tem todo um simbolismo. Entra aqui o debate sobre qual Jerusalém um fiel deve buscar no cristianismo: a cidade real ou a do céu, o fato ou o mito. O goliardo alude a essa riqueza de sentido ao dizer que “as criancinhas não chegarão a Jerusalém, mas esta virá ao seu encontro”.

Orientalismo

Para não dizer que tudo do texto envelheceu bem, o que mais cheira a mofo são as suas alegorias orientalistas: o conjunto de imagens que Schowb usa para descrever Jerusalém, os árabes e os muçulmanos. O papa Gregório, por exemplo, reclama que as crianças foram entregues aos “infiéis”. “Agora elas suspiram nos palácios do Oriente, cativas dos adeptos de Maomé.” É certo que Schwob atribui esses estereótipos a um personagem de seu texto. Também não poderia desautorizar uma linguagem que ainda não era inadequada. Foi em especial depois da publicação em 1978 do livro Orientalismo, do crítico palestino Edward Said, que essa maneira rasa de se pensar o “Oriente” passou a incomodar mais. 

Apesar disso, a obra segue atual. Ecoa, inclusive, o que o autor não poderia prever em 1896: que em 2021 a preocupação não fossem as crianças que saem da França e da Alemanha, e sim aquelas que partem da Terra Santa para cruzar o Mediterrâneo rumo à Europa, refugiadas da pobreza e dos conflitos do Oriente Médio. Como as crianças da cruzada do século 13, essas também desaparecem no mar.

Este texto foi feito com o apoio da Embaixada da França.

Quem escreveu esse texto

Diogo Bercito

É jornalista e autor de Vou sumir quando a vela se apagar (Intrínseca).

Matéria publicada na edição impressa #42 em janeiro de 2021.